OS ANOS, ANNIE ERNAUX (Tradução Maria Etelvina Santos)
"Mas, ao menos, se tais forças me fossem concedidas pelo tempo suficiente para realizar a minha obra, não deixaria acima de tudo de descrever nela os homens, ainda que tal os fizesse parecerem-se com uns seres monstruosos, uns seres que ocupam um lugar tão considerável comparado com o tão restrito lugar que lhes está reservado no espaço, um lugar de facto desmedidamente prolongado, visto que, como gigantes imersos nos anos, eles atingem simultaneamente épocas tão distantes, entre as quais tantos dias ocuparam o seu lugar: no Tempo."
Esta é a última frase, do último volume, do romance 'Em busca do tempo perdido' de Marcel Proust. Depois de construir uma obra monumental, cheia de portas, alçapões e desvãos, este último volume enuncia as intenções do narrador que se prepara para escrever o que acabáramos de ler. É um laço com uma chave na ponta e mil portas onde a experimentar.
Quando não estou totalmente convencido com um livro, procuro amiúde, como neste caso, apoio num outro fiel amigo; como se o elogio do segundo se pudesse colar ao primeiro, ou ajudar na sua interpretação. Não se trata aqui, contudo, de uma associação aleatória – esta é feita pela própria autora. Os dois livros versam afinal sobre o tempo e a memória. Mas o que me fez levantar do sofá para procurar consolo da confirmação no último volume de ‘Em busca do tempo perdido’ foi exatamente o final de 'Os Anos'. Annie Ernaux termina-o de um modo muito semelhante ao que aqui citei: com a escritora que finalmente achou a forma certa para contar a história que acabámos de ler. Talvez esta necessidade de aclarar o que foi feito seja justificada pela sua estranheza. Este é um livro realmente diferente do habitual. Dizer que é autobiografia impessoal não seria exato; um romance social ou sociológico – também não. É um objeto peculiar, que foge ao cânone experimentado e funcional... é esse o seu mérito, mas também a sua dificuldade.
Embora autobiográfica, a história apenas se aproxima e segue a autora, sem nunca se tornar num relato interior. Participa antes de um movimento centrífugo, que procura separar, isolar e enumerar o mundo que se lhe cola ao longo do tempo, sem nunca se aproximar do seu íntimo. Consegue por vezes um efeito de simpatia nostálgica; noutras, o de sobreposição, num palimpsesto em que se inscrevem em contínua substituição cada um dos papéis que universalmente nos cabem: pai, mãe, filho, amante.
A passagem do tempo acrescenta-nos uma sombra monstruosa e periclitante – é essa impressão que o velho Duque de Guermantes, com o seu andar oscilante, projeta sobre o jovem Marcel: "(…) como se os homens estivessem empoleirados em andas vivas em crescimento constante, às vezes mais altas que campanários, que acabavam por lhes tornar a marcha difícil e perigosa, e donde caíam de repente." – lá estou eu à procura da fiel muleta. Os personagens de ‘Os Anos’ não são, porém, estes gigantes vacilantes de uma aristocracia em decadência, quando muito participam de um corpo maior que se manifesta à mesa dos almoços de família, no tal palimpsesto em que sobrepõe não só gerações, mas também a memória pessoal e coletiva.
O livro está bem escrito e é peculiar – se o vão adorar, não sei. Eu gostei, mas não adorei.
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