CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS, ISABELA FIGUEIREDO
Coragem. A memória será sempre a última possibilidade de redenção. E é preciso muita coragem para não a corromper ao ponto de confortavelmente nos justificar, vivendo uma dualidade impossível de ultrapassar, mas incindível – talhada, mas não até ao fim. Isabela é branca e preta. Ama e odeia e ama o pai – duas vezes ama, até na traição. A sua terra (e a sua infância) é um lugar que não pode negar, nem aceitar, de onde não pode voltar, nem sair: “A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-nos sempre”. Esta dualidade é o ponto fulcral do livro, sendo admiravelmente expressa nestes parágrafos:
“Vestiam-me e calçavam-me de branco, mandavam-me pisar o raio da terra tão negra e húmida que chiava debaixo dos pés, ou tão vermelha que o verniz ou o couro se polvilhavam de sangue claro. Não havia forma de poupar o meu corpo às manchas da terra, contudo estava proibida de me manchar dela. Não havia forma de me libertarem dessa necessidade de me manter imaculadamente branca.
Estou sempre vestida de branco, preocupada em não me sujar.
O vestido branco que não usei nesse dia é a mais clamorosa metáfora da minha vida de pequena colona: uma branca de branco, agarrada à saia que não pode sujar, olhando os sapatos brancos que não pode empoar. É assim que me vejo, na cabina da Bedford branca, encolhida debaixo da roupa, preocupada com a poeira que entra pelas janelas.”
O caminho do aeroporto é repetido vezes sem conta na sua memória. Não é um retorno, mas um desterro – apesar de ser esse o libelo que a espera na metrópole (“gorda retornada”); a mais absoluta espoliação, difícil de articular: “Depois veio uma tarde em que fui obrigada a dizer a verdade: «perdi tudo exceto os meus lápis nº1»”. A despedida encarniça-se, torna e retorna, expondo a incondicionalidade da carne:
“Mas, agora, vai, depois lá nos encontraremos e
falaremos. A gente vai a seguir. Agora vai que já é tarde, vai, vai, e neste
instante em que tudo está perdido, em que já não há volta, em que entro por
essa porta de vidro, após os beijos formais, um sentimento estranho que não
consigo controlar, um vazio, um nunca mais vou voltar, uma coisa que se perde,
um vazio, e esse amor tão escondido, tão evidente pelo meu pai, que me projeta
para os seus braços, contra a minha vontade, como uma bala que o atravessa e o
torna exangue, eu chorando a fio, não conseguindo largar o seu corpo, os seus
braços enormes, o seu corpo enorme, as suas mãos enormes, a sua carne enorme,
que beijo, que não quero largar. E volto atrás, chorando a fio, abraçada a
qualquer parte desse corpo sagrado, chorando, chorando-o, arranhando-o de amor,
como se o mundo acabasse ali, e acabava, depois a minha mãe, que me sacudia,
envergonhada, e eu, envergonhada, tanta gente, não chores, filha, olha as
pessoas, não chores, filha, agora vai que já é tarde, e o corpo doce, doce,
ácido, suado do meu pai, o corpo querido do meu pai, a camisa branca e doce,
ácida, suada, encharcada das lágrimas que eu não percebia nem controlava. E
agora vai, agora vai, e atirou-me para dentro da porta de vidro, ao colo atirou-me
para dentro da porta de vidro, e eu voltei-me e vi o seu rosto contrito, já do
outro lado, as suas duas mãos inteiras espalmadas contra o vidro, o sorriso
misturado com lágrimas. As duas mãos iguais às minhas mãos. Estas, de carne,
que agora escrevem esta frase. As mesmas.”
Na segunda metade, o livro ganha um balanço irreprimível, num jogo de oposições que nos esmaga (“A metrópole era suja, feia, pálida, gelada.”); encosta-nos à parede, olhos nos olhos, sentimos uma compressão na laringe, o soluço torna-se incontrolável, sentimos de perto o bafo do Isabela: choramos com ela, mas ela não está a chorar.
“Só nesse ano percebi o que o meu pai dizia quando explicava que não éramos pobres nem ricos, mas remediados. Ser pobre era dormir num colchão de palha. Ser pobre era comer toucinho cozido com batatas e couves. Ser pobre era tomar banho numa bacia larga, no pequeno pátio, junto ao tanque onde a minha avó lavava roupa de senhoras que lhe para fora a pagavam. Ser pobre era ouvir a minha avó dizer que mais valia lavar roupa para fora do que estudar, porque estudar não dava de comer a ninguém. Era viver num quarto cuja pequena janela dava para o galinheiro, e vender pombos, borrachos e galinhas a chorar por vê-los partir, porque o dinheiro calava o afeto e a dor.”
“Foi nessa casa, nas Caldas da Rainha, na travessa do
cais, que o meu pai cresceu até ir para África.
O meu pai nunca falava do passado.”
Mais uma vez voltamos ao cerne do livro, a traição da raça e do pai, em que se articulam simultaneamente culpa, vergonha, orgulho, ódio e amor. E uma segunda traição, a dos portugueses da metrópole, no seu escárnio pequenino e mesquinho pelos retornados, fabricando uma existência impossível, de duas frentes.
“Recebi todos os discursos de ódio do meu pai. Ouvi-os a dois centímetros do rosto. Senti-lhe o cuspo do ódio, que custa mais que o cuspo do amor, e enfrentei, olhos nos olhos, a sua raiva, a sua frustração, a sua tão torpe ideologia. Ouvindo, não disse nada, nem um assentimento, nem um músculo se mexeu, e eu, inteira, era um sólido não.
Tive medo do meu pai. Que me batesse com as manápulas, que me gritasse, que me dissesse, tu não és minha filha, porque a minha filha não gosta de pretos, não acompanha com pretos, não sonha com pretos.
Havia uma raiva tão grande dentro de si, em amigável convívio com o amor que podia oferecer-me de um momento para o outro.
Mas não me arrancou um assentimento. Nunca ouviu da minha boca um tens razão, um realmente, um pois. No máximo, um percebi, como resposta a um percebeste? Ele podia obrigar-me a sentar, ouvir e calar, sujeitar-me a sessões públicas e privadas, formais ou informais, de ideologia rácica, mas não convencer-me das vantagens da raça nem do ódio.
O meu pai não me arrancou ao que eu era nem ao que pensava; o meu pai não foi capaz de formar o meu pensamento. O meu pai não me dobrou. Escapei-lhe.”
A verdadeira redenção, o seu mito fundador, no bom sentido, foi esta fuga em que não saiu do seu lugar. Traiu para que pudesse (para que pudessem) levantar a cabeça.
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