AUTOBIOGRAFIA DE UMA MULHER ROMÂNTICA, NATÁLIA NUNES

 

Poderá ser um exagero da minha parte, mas não percebo por que razão este romance não faz parte do PNL ou mesmo do curriculum escolar. O livro foi recentemente reeditado pela Sibila (2022), mas antes disso creio que andava desaparecido do mercado editorial. Li-o numa edição de abril 1966, requisitada na Biblioteca de Oeiras, por sinal bem bonita e bem conservada. Mas é estranho que não tenha sido reeditado durante cinco décadas, pois é um romance extraordinário. 

Na minha interpretação, o núcleo do livro gira em torno de uma pergunta, que é ao mesmo tempo uma aspiração: como ser feliz? O livro, e a personagem principal (Clotilde), vivem uma dualidade que, quanto a mim, nunca é inteiramente desfeita. Uma dualidade entre o modo de ser romântico, que cresce a partir do interior, da individualidade, e se sobrepõe à realidade; e uma outra coisa, que não sei bem nomear, e que talvez seja ainda romantismo, pela forma como é enunciada, que procura a felicidade pela sublimação, pela aceitação plena dessa mesma realidade, até à completa anulação. E não há uma resposta cabal em nenhuma destas abordagens, pois embora Clotilde ao fazer sua autobiografia como mulher romântica, procure uma exumação das razões da sua desgraça – trata-se de uma investigação –, é impossível sentirmos nessa culpabilização uma absoluta sinceridade – tendemos a simpatizar com este caminho, nem que seja porque se trata de uma expressão da sua individualidade.

A meio do romance, Natália Nunes desenha uma metáfora belíssima sobre esta mesma tensão. Fala do tempo em que se refugiava debaixo da sombra da ameixoeira enquanto o tio Afonso dormia a sesta. Nesse tempo a dualidade exprimia-se como luz e sombra. Sob a luz “era o mundo todo em redor que, por assim dizer, se apoderava de mim, era como se o meu corpo se fosse pouco a pouco diluindo, perdendo a sua densidade e delimitação concreta no espaço, para assimilar-se às vibrações da natureza física, como se a força do meu pensamento se adicionasse à imensidade espantosa, extasiante, dessa existência cósmica exterior à minha; o mundo engolia-me, sugava-me, como a areia suga a água da onda que sobre ela vem esbater-se. Então eu conhecia um estado que se aproximava muito daquilo que deve ser a beatitude, a felicidade total. Mas apenas me aproximava, porque a diluição do meu ser não era nunca completa, havia sempre um resto de mim que ficava a pulsar devagarinho, a rumorejar em surdina como um som de água corrente subterrânea; isso, esse resquício de mim que não era solúvel na imensidade dos espaços nem nas rescendências e luminosidades da terra, era insistente, persistente e quase dava a impressão de ser um duplo vigilante, espia atento que cumpria a obrigação de não me deixar adormecer de todo. E era a insistência desta presença, desta vigilância que, impedindo a minha dádiva integral ao Cosmos, guardando avaramente uma reserva do meu ser, me impedia simultaneamente de atingir a felicidade.”(páginas 105, 106).

Debaixo da sombra da ameixoeira essa procura da felicidade prosseguia de forma inversa:

Quando me introduzia na minha cabana perfumada, creio que (sem que pudesse então descrevê-lo, pois era ainda uma criança), continuava a minha perseguição da felicidade, mas seguindo um caminho que ia abrir-se numa direcção oposta à do primeiro, daquele que me levava à assimilação, à grandeza do exterior. Ao cabo do primeiro dava comigo em dissolução, dispersão, decaimento e quase aniquilamento; ao cabo do segundo era uma solidificação, uma concentração, uma ascensão e quase plenitude. Aquilo que no primeiro restava como vestígio, como salvado de um naufrágio, no segundo era matéria-prima que tomava forma e volume, um volume cada vez maior e mais condensado - um embrião em crescimento e aproximação do tipo específico. Sentada no chão, tendo por cobertura a abóbada de folhagem, via-me num espaço restrito, limitado e finito, e era logo um sentimento de envolvência, de intimidade, de segredo revelado... que segredo? que revelação? A revelação extraordinária, antípoda daquela que sentia quando deslizava para a imanência cósmica. A revelação de ser eu a encher o exterior com a minha realidade, de ser eu, qual esponja, a absorver a presença sensível de todas as coisas e a crescer em consciência do meu corpo e do meu pensamento. Como um balão que incha e sobe no ar, o sentimento do meu próprio ser ia-se enchendo, e então uma força parecia querer elevar-me, fazer-me subir muito alto, cada vez mais alto... O vestígio de mim mesma que apenas restava nos instantes de dissolução era, agora, em suspensão, uma estrela brilhante, pairando no céu...

De súbito, acontecia qualquer coisa (oh! uma coisa insignificante!), um ramito seco que estalava debaixo do meu corpo, uma pequena pedra a perfurar-me um joelho ou uma vareja que entrava estonteada, num zumbido penetrante, intenso, e vinha chocar, como um bólido, a rijeza violenta do seu corpo contra a minha face - e eis a realidade do exterior irrompendo abruptamente na minha intimidade! O balãozinho rasgado, rolava das alturas e vinha estatelar-se sobre a terra!

Essa irrupção do exterior não podia comparar-se ao tal vestígio espiante que me restava na outra circunstância de que já falei; este deixava-me a mesma suave impressão que deve ter a criança que adormece com a certeza de que ali perto a mãe está e vai velando o seu sono. Aquela não; assustava, envergonhava, irritava, revoltava e tornava risível. Estar uma pessoa, neste caso uma garota, muito entretida com a sua própria imaginação, a pensar que a cabana é sua e muito sua, que ali é o seu cantinho e mais todas essas coisas inefáveis, e vir de lá de fora, bêbeda de sol, a bruta de uma mosca, um misero insecto... Ah! bastava uma mosca para picar o meu balão de felicidade! E a mosca aparecia sempre...’ (páginas 106,107)

Quer por um caminho, quer pelo outro, a felicidade plena está-nos vedada. No primeiro a sublimação nunca é completa; no segundo, a expansão da imaginação sobre a realidade teima em ser interrompida por míseros moscardos! A realidade não deixa de suceder e nos bater na testa.

Este episódio é depois transposto para o campo amoroso. Também aí os seus primeiros amores são uma projeção dos seus anseios interiores, uma expansão, mais do que uma sublimação em que se deixava anular. Oscilam entre a aproximação e a tangibilidade de provarem uma taça de vinho (proibido) no recesso escuro da adega, ambos contentes com a satisfação que proporcionam outro, ao dizerem, prova, bebe; e o afastamento em que procura um estado de tensão permanente, em que nada se consuma e tudo permanece para sempre simultaneamente anseio e perfeição. Clotilde chegava ao ‘absurdo’ de se afastar da presença do rapaz, para que assim pudesse pensar muito nele. Em relação a um segundo amor, com que combinara um encontro depois de uma intensa troca de bilhetinhos, diz inclusive: ‘Dir-se-ia que me era indiferente ser aquele ou outro rapaz que ali estivesse; o importante era que alguém estivesse, que alguém tivesse acorrido’.

Em termos sociais a situação é de certa forma semelhante. Enquanto as suas primas se deixavam sublimar, conformando-se às normas sociais que emanavam de local incerto, como se fossem a luz de um sol, fazendo tudo o que se esperava delas; Clotilde sentia uma permanente e completa desadequação, o seu mundo interior colidia com estas normas e com aquilo que era esperado dela. Não queria casar e casou, para experimentar.

Na fase final, a história adquire também matizes políticas. Clotilde é uma ‘pequena burguesa romântica’, egoísta (no sentido da enfatização do seu mundo interior), contemplativa (porque recusa ação em favor de uma tensão ideal) que é admitida no convívio de ativistas políticos, homens e mulheres que privilegiam ação e a sublimação das suas aspirações pessoais em favor do coletivo. Julga-os como ela, românticos, porque perseguiam afinal um ideal. A história termina numa renúncia dramática, perante a declaração amorosa de Clotilde:

‘- (…) A Clotilde é... uma romântica e eu estou em luta contra todos os românticos. Porque os românticos são egoístas e eu estou em luta contra todos os egoísmos. Você é uma contemplativa e a sociedade precisa de activos... E continuou, exaltado: «O seu amor por mim, pode ser que exista, mas não passa de um amor sensual embora você julgue só ternura e idealismo. Você apaixonou-se por mim, sem me conhecer, portanto apaixonou-se pelo meu aspecto físico; foi por mim... podia ter sido por outro...» Falava de cabeça erguida, indiferente ao vento e à chuva - como se não falasse já para mim, que ia ao seu lado!

Eu sentia-me afundar em dor e, no entanto, quando olhava para ele, deslumbrada, dizia só para comigo: «Mas foi por ele, exactamente por ele que é... um romântico como eu!».

Depois ele não disse mais nada senão isto: «Não devo aceitar o seu amor... renuncio-a, Clotilde!»’

Este episódio fez-me lembrar a história dos tapetes de Platão [1]. Quem é afinal mais vaidoso? Aquele que tem bens materiais ou aquele que os despreza? Quem é o mais egoísta? Aquele que segue o seu desejo individual ou aquele que renuncia a tudo pelo seu ideal coletivo? Isto porque a vaidade é o mais pernicioso dos egoísmos. E quem será o maior romântico senão aquele que recusa a existência do egoísmo?

Todo o livro é muito bem urdido em torno do seu núcleo central, com belíssimas histórias e metáforas, apresentando depois diversos matizes sociais e políticos. Agrada-me sobretudo que seja aberto, não proporcionando uma resposta.

A edição de 1966 tem na contracapa um texto que termina da seguinte forma: “Autobiografia de uma mulher romântica mereceu o aplauso unânime da crítica responsável”, afirmação que nos transporta para outros tempos… Da minha parte digo que também a crítica irresponsável (em que me incluo) aplaude este excelente romance.

[1] História dos tapetes de Platão: Platão era um conhecido filósofo e homem rico que gostava dos seus luxos. Diógenes, o Cínico, era também um filósofo que vivia nas ruas de Atenas como um mendigo, ignorando todas as convenções sociais e morais. Um dia em que Platão dava uma festa, Diógenes apareceu à porta com o seu aspeto andrajoso, como era habitual. Limpando os seus pés sujos a uns magníficos tapetes que se encontravam à entrada proclamou de forma tonitruante:

- Limpo os meus pés à vaidade de Platão!

Ao que o outro filósofo respondeu simplesmente:

            - Não, tu limpas a tua vaidade nos meus tapetes.




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