AUTO-RETRATO COM RADIADOR, CHRISTIAN BOBIN



Vivos e mortos convivem nesta lentidão de arrastada beleza. A espera que convida a alegria:

‘Espero. Esperarei toda a minha vida. Esperarei toda a minha vida. Sou incapaz de dizer o que espero.’

‘Fiz-me escritor ou mais precisamente deixei fazer-me escritor para dispor de um tempo puro, limpo de qualquer ocupação séria.’ (Domingo 7 de Abril)

‘Procuro desde o despertar o que é necessário ao dia para ser dia: um pouco de alegria.’ ‘Quando estamos alegres, Deus desperta.’ (Segunda 8 de Abril)

Embora não seja difícil explicar de que trata este livro, já o disse sinteticamente, tal resumo não poderá deixar de ser vazio, oco – um enunciar abstrato da beleza, quando o que se exige é a sua completa pronunciação. O próprio autor tenta esclarecer no que consiste o seu atual trabalho:

‘À questão sempre embaraçosa: o que estás a escrever neste momento, respondo que escrevo sobre as flores, e que num outro dia escolherei um assunto ainda mais delicado, mais humilde se possível. Uma chávena de café. As aventuras de uma flor de cerejeira. Mas por agora já tenho muito para ver: nove tulipas aos risos num vaso transparente.’ (Terça 9 de Abril)

‘É do muito pequeno o que faço. É da ordem do minúsculo, do infinitesimal. À pergunta: o que fazes na vida, isto é o que gostaria de responder, isto é o que não ouso responder: faço o do muito pequeno, dou testemunho de um pé de erva. Tal como o mundo vai, mal, conheço-o e sofro com ele como vocês, um pouco menos que vocês, talvez: debaixo de um pé de erva, está-se protegido de muitas coisas.’ (Sexta 6 de Setembro)

As flores, a sua beleza, a sua decadência, e própria beleza da sua decadência, são uma companhia constante ao longo de todo o livro. São tratadas com delicadeza na escrita, escapando a uma sensibilidade superficial. Simbolizam talvez aquilo que existe e é belo, belas na ausência de si mesmas, belas porque se ausentam, como crianças que dizem coisas inesperadas, são aquilo que sabe viver na ausência, que simplesmente existe, como o amor, e sabe morrer.

‘Quanto mais o seu fim se precisa, mais as tulipas se esticam para a janela – como se a luz tivesse algo a dizer-lhes que entendem cada vez pior. A morte próxima deixa-as um pouco surdas. Pedem ao dia para repetir o que acabou de lhes confiar, se possível um pouco mais alto.’ (Quarta 10 de Abril)

‘Na cozinha, umas rosas minúsculas, adoráveis. Duas estão em grande conversa, apoiadas uma na outra. Quando saio do apartamento, olho-as e tenho a sensação de deixar a luz acesa.’ (Sábado 20 de Abril)

‘Desta vez, fui eu que acordei primeiro: descubro as rosas em trajes menores, marcadas pelas dobras do sono.’ (Quarta 15 de Maio)
Citando Hölderlin, o autor fornece a chave para a sua atitude contemplativa:

‘Faço o meu ninho numa frase de Holderlin, escrita no final da sua vida, nos chamados anos da loucura: «Ninguém, sem asas, tem o poder de agarrar o que está próximo.» (Sexta 26 de Abril)

As asas não são para voar para longe, são para agarrar o que está perto:

‘Penso em vocês que vão aos confins do mundo, por motivos de negócios ou de turismo. Penso em vocês que apanham comboios, barcos e aviões. Desejo-vos que encontrem tantas maravilhas quantas as que florescem nesta cidade que não deixo. Como os grandes devoradores de espaço, mantive o meu diário. O meu paquete, pesado e lento era o edifício onde vivo.’ (Sexta 21 de Março)

Num diálogo permanente com os mortos, que se confundem com os vivos, enquanto os vivos se confundem por vezes com os mortos:

‘Perante o que mais te feria, começavas por soltar gargalhadas. Já não estás aqui mas apreendi a tua lição, hoje escrevo assim: «No que pretende arruinar-nos, cresce o nosso tesouro.»’ (Sábado 20 de Abril)

‘Os mortos são como aquelas pessoas um pouco austeras, por trás das portadas fechadas de uma casa de província. O riso de uma menina, no jardim ensolarado, fá-los sair do seu torpor.’ (Quarta 15 de Maio)

É de certa forma curioso que o autor designe a obra como um autorretrato. É com certeza um autorretrato, mas também e sobretudo um diálogo:

‘Tenho quarenta e cinco anos e tenho vontade de viver e por vezes essa vontade esbate-se e afasta-se um pouco, mas se um nada me mata, menos que nada ressuscita-me, e a vontade plena de viver regressou esta manhã pelo canto dos radiadores frios, simplesmente por isso, creio então que nunca mais estarei perdido, mesmo quando o voltar a estar. Este é o meu auto-retrato de quarta-feira 4 de Setembro de 1996, amanhã terá mudado e talvez já esta noite. Escrevi-o par que escrevam o vosso à vossa maneira, datando-o e dando-o depois a alguém que amem. Aqueles que atravessam as nossas vidas fazem-no às cegas, sem saberem sempre bem quem somos e onde estamos. É bom dizê-lo. Digo-vos para hoje, quarta-feira 4 de Setembro de 1996, às onze e vinte, manhã, no apartamento frio e cantante. (4 de Setembro)

Pouco mais fiz aqui do que citar o autor, talvez em demasia, mas há ocasiões em que o mais inteligente é sair da frente e acreditem que a escolha das citações também não constitui grande mérito, pois o livro é fecundo. Termino, ainda assim, da mesma forma:

‘A escrita lava os vivos e dá de beber aos mortos.’ (Terça 18 de Fevereiro)

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