O HOMEM QUE NÃO SONHAVA

229 Melhores Ideias de Quiosque em 2020 | Quiosque, Coreto, Lisboa

Nunca sonhava. Pelo menos nunca me lembrava dos meus sonhos. Não é possível afirmar que não sonhava. Mas, por maioria de razão, também não é possível afirmar o contrário. Não me importa que digam: toda a gente sonha. Como é que podem ter a certeza disso? Será de excluir que eu seja uma aberração? Todas as pessoas normais sonham. Mas o que é uma pessoa normal? Muito bem, uma pessoa normal é uma pessoa normal. Igual a todas as outras. Igual à maioria, dizem-me. Mas quanto mais pensamos no assunto, mais difícil parece a resposta. 

É comummente aceite a existência de aberrações. Mas as aberrações, essas, não são comummente aceites. Há, isso sim, a crença de que uma aberração tem, de alguma forma, culpa de ser uma aberração. Porque é que não se parece ou comporta como uma pessoa normal? Deve ter feito algo de moralmente errado. É claro que a moral é tão abstrata como o homem normal. Não é possível de instanciar – nem o homem normal, nem o homem moral. Um homem puramente moral seria, aliás, uma aberração – mas não vamos complicar. Os homens normais são moderadamente imorais, já o percebi; embora devam manter as aparências e o bom nome. Assim, também a mim me olhavam com desconfiança quando dizia que não sonhava: 

    Não deves andar a alimentar-te bem; 
    descansa, andas sobre-excitado; 
    ou então: cansa-te, verás que dormirás melhor; 
    já foste ao médico (?), como queres ser tratado se não vais ao médico (?); 
    o que é que o senhor quer (?), não seja hipocondríaco. 


Ora, já se sabe que estas coisas são mesmo assim. Não podemos dar ouvidos a sentenças alheias. É melhor talharmos as nossas próprias sentenças. E depois fazer com elas o que bem nos aprouver. Como fazemos com tudo o que é nosso. As mãos, por exemplo. Ou os pés. Contando que nem sempre fazemos o que queremos; nem sempre elas fazem o que queremos; e ainda, que nem sempre sabemos o que queremos fazer com elas. 

Se não sonhava, a culpa deveria ser minha. Estava com certeza a fazer alguma coisa errada. Quando mais não seja, era culpado de pensar que poderia ser diferente de todos os outros. Poder-se-ia admitir que um homem, na verdadeira aceção da palavra, não fosse capaz de sonhar? Um homem sem sonhos não é um verdadeiro homem. É pior do que um homem sem ambições. Ou alguém que não queira ser feliz. É uma contradição. Uma aberração. Mas não é um homem.

O senhor com certeza que não deseja sonhar. Ou deseja?

O senhor, bem vistas as coisas, é, à partida, culpado. É assim que a teia está urdida. Não interessa o que fez. Interessa sim, que é culpado. O senhor não foi culpado de nada. A culpa é pré-existente a qualquer ação sua. Não pode deixar de o ser. Qualquer julgamento é apenas relevante para si e mais ninguém: para que descubra a sua culpa.

O senhor é culpado de não sonhar.


Recusa-se a acordar na hora certa. Faz por esquecer-se dos seus sonhos. Desgasta-se em todo o tipo de trabalhos. E agora, vem chatear os outros, lamentando-se, como se nós tivéssemos culpa da sua ausência de sonhos. Como se nós, de alguma forma, lhe tivéssemos roubado os sonhos.

O facto é que não me lamentava.

Trabalhava numa tabacaria e era o homem que não sonhava. Era essa a minha particularidade. Era nisso que fundava toda a minha existência. Delimitava-me por essa lacuna. E, também, fisicamente, pelos jornais, as revistas, o tabaco e vária papelaria e os eternos jogos de azar. A lata verde do quiosque e as visitas de moeda na mão, de quem vem comprar o dia, selavam-me.

Nos jogos de azar – daqueles que eu vendo, daqueles que me compram –, muitos perdem para que um ganhe. Ora, se toda a gente sonha, e eu não, que devo pensar? Será meu o bilhete premiado? As minhas noites embrulham os dias num ruído branco, variável, mas indistinguível e ainda assim sólido, com que mastigo o sono; aos outros está reservada uma confusão comparável a uma latrina comunitária a céu aberto. Nunca se sabe quem aparecerá e em que inopinada companhia; com que rapidez alternam entre locais na realidade distantes, embora cada um desses lugares não seja exatamente nenhum lugar; que capacidades físicas lhes são ampliadas (voando, por exemplo), ou negadas impossibilitando a fuga. Os sonhos são confusos; fazem pensar em coisas que não têm qualquer sentido – apenas e só, porque parecem aparentadas de realidade, ao mesmo tempo que, uma crença na sua obscura raiz inconsciente, os magnifica. Ter sonhos é o mesmo que tentar conter num balde roto a individualidade da água. Uma noite branca, isenta de sonhos, delimita o dia, delimita-te a ti. Posso, com um pouco mais de confiança, sentar-me na pequena cadeira das horas mortas, no fundo do quiosque, que me deixa os olhos ao nível do balcão, enquanto rabisco as palavras cruzadas de jornais antigos em cima dos joelhos, num delicodoce torpor de um homem sem sonhos – um homem sem desejos, que não tem onde ir, um apagado vendedor, baço; uma dedada num vidro, deliberadamente, um rosto que ninguém vê.


Ontem, porém, tiraram-me tudo. Julgo ter sonhado.

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