INCENDEIAM-SE POMBOS




Ontem estava tão sozinho que comecei a assobiar. Nunca tinha assobiado assim, por estar sozinho. Deu-me vontade de rir. 


Acordei com dores de cabeça e febre baixa.


Telefonei para o tal número. Fila de espera e interrogatório. Passados 30 minutos, duas pessoas, cobertas dos pés à cabeça com um fato branco hermético, máscara e viseira batiam à porta. Abri. Enfiaram-me uma espécie de cotonetes no nariz e na boca. 

“Não saia de casa”, disseram-me.

Nessa noite adormeci no sofá. Acordei às duas da manhã. Na televisão estavam a transmitir um filme de terror. Peguei no telemóvel; tinha recebido uma mensagem. Os meus olhos nem conseguiam focar. Número desconhecido. “Estou tão cansada desta vida. Se não fosse pelo meu irmão, acabava com tudo. Não aguento mais.” Quem seria? 

Acordei agoniado, ainda a pensar na mensagem de ontem. Não tomei banho e fui ao supermercado. É ridícula esta reclusão forçada.

À porta do centro comercial estava um tipo a pedir. Alto e magro, com roupas velhas. Disse-lhe que não tinha dinheiro – e realmente não tinha. De qualquer forma, não é meu hábito dar dinheiro a ninguém. Precisava de pouca coisa do supermercado. Queria apenas sair de casa. Comprei café, desodorizante, uma caixa de pastilhas e meia dúzia de laranjas: 6,66€. Troquei um olhar preocupado com o caixa do supermercado. Já viu isto? Às vezes o universo alinha-se para nos fornicar. E isto é apenas um sinal. Nada mais. 

O cartão multibanco não passava e o empregado mostrava-se renitente em pôr mãos à obra para me ajudar. Deve ser falta de jeito, desculpei-me. Pegou no cartão e passou-o à primeira. Logo de seguida, uma profusa desinfeção com solução alcoólica devolveu-o à sua asséptica sanidade. Raios os parta! Por todo o lado estas viseiras! Parece que estamos num mau filme americano.

Voltei pelo mesmo sítio e encontrei novamente o pedinte. “Não tem qualquer coisa?” Disse-lhe automaticamente que não. Dei dois passos e a minha consciência traiu-me. Podia dar-lhe pelo menos uma laranja. Pousei o saco e disse-lhe: 

“Oiça lá, quer umas laranjas? Posso dar-lhe umas laranjas…” 

“Não, deixe estar”, respondeu-me. “Fazem-me mal ao estômago.” Pensei em mandá-lo para o caralho. Mas depois deu-me vontade de rir. 

Ultimamente tudo me dá vontade de rir. Mesmo o mais dramático. Talvez esteja insensibilizado pelos telejornais. Pelas contagens diárias de mortos. Felizmente, há algum tempo que gozo de uma vista privilegiada para o cemitério – há pouco tempo na realidade, mas agora tudo me parece distendido e distante. É bastante tranquilo. Parece um jardim. Pelo menos os pássaros não notam a diferença. De vez em quando passa um carro funerário, lembrando que qualquer dia lá vamos nós, para o mesmo buraco. Ultimamente tudo me dá vontade de rir. Mesmo os funerais. Sensivelmente mais frequentes, atestando a idoneidade das conferências de imprensa diárias, e sem cortejo.

Lembrei-me novamente da mensagem suicida. O que é que eu faço com esta merda? Não pode ser ninguém que conheça. Não estou a ver. Nem sequer tenho amigos. Será um esquema? Talvez queiram que telefone de volta e depois sabe-se lá o quê. Não sejas paranoico. O mundo já está paranoico. Não sejas tu também. Respondi-lhe também por mensagem: “Peço desculpa, mas não estou a reconhecer este número. Peça ajuda.”. Respondeu-me pouco depois: “Eu é k peço desculpa. Enganei-me no número. Mais uma vez peço desculpa.”. Foda-se. Estou eu a ralar-me… Pelo menos tem alguém a quem mandar uma mensagem, não está sozinha. Tem apenas alguma dificuldade com números de telefone. Como é que alguém se engana a enviar uma mensagem destas? Não engana. 

Pego no telefone e ligo-lhe: “Oiça. Não sei como se chama. Mas ambos sabemos que não foi um engano. Conhece-me de algum lado? Ou envia estas mensagens ao acaso, simplesmente à espera que alguém lhe responda?”

“Segunda hipótese”, respondeu-me laconicamente.

Nesse momento alguém bateu à porta.

“Só um momento”, disse-lhe.

Desligo e vou abrir. Era a bófia.

“O senhor foi visto no supermercado.”

Chibos! Ou foi o gajo da caixa ou então o cabrão do pedinte enfastiado.

“E daí?”

“Pode ser preso. Sabe disso?”

“De qualquer maneira estou preso. Tenho aqui um caso que, esse sim, merece a vossa total atenção. Devem ter visto o meu irmão no supermercado. Somos muito parecidos. Houve até uma vez que conseguimos enganar a Ermelinda. Ou talvez tenha sido ela a enganar-nos… Mas estava a dizer: recebi uma mensagem de uma jovem perturbada. Para além de trocar os quês por kapas, parece estar extremamente aborrecida. Deviam ir lá bater-lhe à porta para ver se a animam.” 

“De que está a falar?”

“Esqueçam. Querem mais alguma coisa?”

Começaram a falar-me de coimas e disse-lhes que só tinha laranjas, que não tinha dinheiro, o que era verdade. Ainda assim teimaram em deixar-me uma terna notificação. Fiquei comovido com a atenção.

De volta à minha solidão. Não me apetece ligar a televisão. Fico a olhar pela janela. Durante muito tempo. Tanto tempo, que a sua perceção se torna quase sólida.

Penso novamente na rapariga. Que idade terá?

Começo a sentir-me excitado. Imagino beijos lentos e longos. E ela a tremer debaixo de mim, até se vir. O prazer dos outros é sempre melhor do que o nosso.

Telefono-lhe de novo, depois de me acalmar:

“Estou? Sou eu outra vez. Aquele que te calhou na lotaria. Precisas de ajuda?”

“Não precisamos todos?”, responde-me.

“Mas que história é essa de querer acabar com tudo?”

“Hum. Queria ver se alguém me telefonava de volta.”

“Porquê?”

“Sei lá… Talvez seja uma maneira de conhecer boas pessoas. De sabermos com quem estamos realmente a falar.”

“Estou a ver. Mas olha que eu sou péssimo e ainda assim estou aqui a falar contigo.”

“Não podes ser assim tão mau.”

“Acredita que sou. Devo estar a sentir-me sozinho, apenas isso. Sabes que no outro dia comecei a assobiar enquanto arrumava a loiça. Bolas, é preciso muito silêncio para uma pessoa necessitar da companhia de um assobio – daqui a pouco começo a falar sozinho.”

“Estamos todos no limite da sanidade mental.”

“Olha, precisava de companhia. Onde moras?”

“És demasiado velho para mim.”

“Como é que sabes?”

“Não sabia. Mas agora já sei.”

“Saíste-me melhor do que a encomenda. Estou progressivamente mais novo, portanto algures no tempo havemos de nos encontrar.”

“Estava só a gozar contigo… Não acho que a idade seja um obstáculo para aquilo que procuro.”

“E o que é que procuras?”

“Achar.”

“O quê?”

“A sorte grande. A lotaria.”

“Acreditas na sorte?”

“Não. É por isso que jogo muito.”

“Não estou a perceber.”

“Quem não vai a jogo, não pode ganhar nem perder.”

“Estou a ver. Acho que tens razão. Mas qual é o teu jogo?”

Nesse momento desligou. Fui até à janela e acendi um cigarro. O último. Tenho de ir à bomba de gasolina comprar mais. Deve ser o único sítio onde ainda os vendem. Qualquer dia acabam com essa merda em nome da saúde pública. Já faltou muito mais. À noite, as pessoas juntam-se em redor dos postos de abastecimento como quem estaria à porta de um café. Param os carros nas traseiras e levam os filhos que brincam por ali. À frente da bomba, a fila estende-se demorada, convenientemente espaçada, enquanto as pessoas pagam lentamente o seu café, cigarros ou cerveja. Os amigos fumam junto aos depósitos de combustível enquanto esperam. São os novos pontos de convívio.

Há coisas boas: dizem que a poluição baixou abruptamente nos centros urbanos. Dizem também que é a maior recessão de sempre. O mercado de futuros do petróleo atingiu valores negativos. No entanto, o que é essencial mantém-se e não há razão nenhuma para que haja privações – de ninguém. Os magnatas estão em pânico. E se toda gente deixasse de andar de carro e consumir coisas supérfluas? E se deixassem simplesmente de trabalhar? Devem ter pesadelos assustadores.

Será que fumar um cigarro é supérfluo? E ouvir música? E ler?

Quero lá saber. O que é que interessa isto? Estou apenas a pensar demais. 

O que eu queria agora era um corpo nu de encontro ao meu. Sentir o seu respirar, o seu calor e mais nada. E ficarmos assim quietos. Até nos virem as lágrimas aos olhos e começarmos a soluçar. O soluço é lindíssimo. É uma convulsão incontrolável. Chorarmos com outra pessoa é tão bonito. Já ninguém se presta a essas fragilidades.

Fui dormir.

No dia seguinte, logo pela manhã, olhei-me ao espelho. Demoradamente. Sob todos os ângulos possíveis. Olho-me pouco ao espelho. Odeio fotografias. Já quase não me reconhecia. Estou mais magro. A barba cada vez mais branca. Nunca pensei que aos cinquenta anos pudesse ter quase todos os cabelos brancos. Devem dar-me algum charme. Uma aparência de experiência. Contudo, não tenho ideia do que ando aqui a fazer. Não sou muito diferente de todos os outros. Talvez na certeza da minha ignorância seja diferente. Mas isso não ajuda muito. Ou vais a jogo ou não vais a jogo – é tudo o que tens que decidir.

Peguei novamente no telefone:

“Olá.”

“Olá.”

“Julguei que não me ias atender.”

“Porquê?”

“Porque ontem me desligaste o telefone na cara. Porque é que fizeste isso?”

“Não sabia responder.”

“Claro. Estou a ver. Olha, queres vir cá a casa para chorarmos juntos?”

“Está bem.”

Voltou a desligar-me o telefone.

Aqueci água para o café. Fumegante e cheiroso. Peguei numa laranja e enfiei a unha junto ao pé. Puxei a casca libertando uma pequena nuvem de gotículas de ácido, que me salpicou os óculos e invadiu as narinas. Ah, o cheiro do café e laranja: deus não nos abandonou. Pode estar um pouco esquecido. Também deve ter imenso de fazer.

Batem à porta. Raios os partam. Não há um momento de sossego. Estava aqui tão bem. Mais um segundo e começava a assobiar. Não percebo porque chamam a isto confinamento geral. 

“Sim?”

“Sr. Armindo? Direção Geral de Saúde.”

Abri a porta.

“Sabe, mais um segundo e começaria a assobiar.”

“Assobiar?”

“Esqueça. A que propósito vem incomodar-me?”

“Temos os resultados do seu teste.”

“Ai sim? Agora não quero saber. De qualquer forma não quero sair de casa. E sinto-me bem. Portanto, se não se importa, tenho de ir à minha vida. Esses fatos brancos transtornam-me. Com licença. Passem bem.”

Os choupos largam, por esta altura do ano, uma nuvem de sementes envoltas em ternos flocos de pelo, em tudo semelhantes a uma neve seca, mas que se desloca de forma errática, ignorando a gravidade, na horizontal ou mesmo na vertical, subindo dezenas de metros, para depois acabar, à falta de sustentação, forrando recantos, retidos por uma qualquer aresta. 

Não sei bem porque razão me lembrei disto. O mundo entra-nos pelos olhos dentro. E também nós temos arestas.

Toca o telefone. É impossível pensar nestas condições.

“Sim?”

“Sou eu.”

“Ah. Voltaste a desligar-me o telefone na cara.”

“Pensei que a conversa tinha acabado.”

“A conversa nem sequer começou.”

Pela janela vejo o mendigo (o tipo do centro comercial) a revirar os caixotes do lixo.

“De qualquer forma era uma proposta descabida.”

“Talvez. Onde estás?”

Os tipos da DGS vão falar com ele (o mendigo).

“Espera um bocado, já te ligo.”

“Ei!”, grito da janela. “Deixem-no em paz! O homem anda na sua vida. Esta é a casa dele! Percebem?”

Olharam para mim incrédulos.

Fitei novamente o telefone. Mas agora já não me apetecia falar.

Fico a olhar para as sementes de choupo, flutuando como flocos de algodão, enquanto bebo o meu café – já frio. Não há nada pior do que café frio.

A vizinha tem um canário que canta lindamente. Quando o ouvi, desisti da ideia de ter um animal de estimação. Esta é a situação perfeita. Disfruto da sua sonora companhia, sem nenhuma das despesas ou preocupações. Não sei se não terá sido pelo canário que desenvolvi esta apetência para assobiar… A minha empatia manifesta-se de forma peculiar. Não esperem de mim empatia pela vulgaridade. O canto dos pássaros, no entanto, é divino; não é vulgar, apesar de habitual. Como a chuva. Talvez a vulgaridade seja única e exclusivamente humana. Nada mais triste do que um homem banal. Um pássaro não sabe como ser banal. Quando canta, fá-lo como se não pudesse ser de outra forma. Tudo o que é intocável, é afinal divino. Por vezes, também os homens conseguem ser intocáveis. Na sua fragilidade, mas também na sua potência. É uma qualidade frequentemente associada à ausência de pensamento, mas não de alma. É claro que somos regularmente asquerosos, rançosos; em cada cálculo, em cada reserva, em cada hesitação. Espera-nos um juízo implacável. Nada mais do que um buraco escuro, o silêncio eterno, a imobilidade total. É esse o inferno que nos espera.

Pego novamente no telefone. Reparo no número da rapariga. Termina em 666. Que raio quer o diabo comigo?

«Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, porque é número de homem; e seu número é seiscentos e sessenta e seis.» (Apocalipse 13:18) – tenho uma velha bíblia em casa, o que constitui todo o entretém que um homem precisa. Seis, que é o número do homem, criado por deus ao sexto dia. 666 uma trindade humana, por oposição à divina trindade: pai, filho e espírito santo.

Graças a deus que não sou supersticioso. A besta está já entre nós. Há muito tempo. Não esperem, procurem. Não estão a olhar para o sítio certo, pois está em todo o lado. Especialmente onde o vosso cálculo a julga mais improvável. Não está com certeza entre os pobres e imundos.

Enquanto folheava a bíblia oiço alguém a assobiar nas escadas. Curioso, aproximo-me da porta e espreito pelo óculo. Ninguém. Apenas uma silenciosa penumbra. O assobio desaparecera. Terei imaginado um assobio? Começo a não confiar no meu discernimento. Se toda a gente fizesse o mesmo, seríamos mais ponderados. Devemos confiar exatamente na falta de discernimento.

Deito-me no sofá e adormeço a ver um filme.

Quando acordo é noite. Vou comprar tabaco.

Um casal jovem, dos bairros pobres, passeia o bebé no seu carrinho até à bomba de gasolina. São onze horas da noite. Vêm tomar café, comprar tabaco, e ficam por ali a conversar. Talvez trafiquem droga. Estacionam os carros de portas abertas e encostam-se às bombas a conversar e a fumar um cigarro. Um dos tipos brinca alegremente com uma criança obesa que acompanha a mãe. Muitos deles devem estar agora sem trabalho. Não têm mais nada que fazer senão beber cafés e fumar cigarros.

Compro o tabaco e volto para casa.

Pelo caminho encontro novamente o mendigo.

“Tens um cigarro?”

“Toma lá” e passo-lhe o maço inteiro.

“Não posso aceitar o maço inteiro, companheiro.”

“Porque não?”

“Dizem que dá azar. Fica com três.”

“Nunca tinha ouvido isso.”

“Já tinhas dado um maço de tabaco inteiro a alguém?”

“Não.”

“Ora aí está!”

“Conversa da treta, meu amigo. Desampara-me a loja.”

“És um tipo porreiro.”

“Não sou nada.”

“Digo-te que sim.”

“Que sabes sobre isso?”

“Conheço imensos tipos.”

“Lá isso é verdade. E o que é que tens a ensinar-me acerca deles?”

“Nada que já não saibas.”

“Falas por enigmas?”

“Não, os enigmas falam através de mim.”

“Estou a ver que sim.”

“Sabes, os enigmas constroem-se por quem os procura desvendar. Se os aceitares, desvanecem-se.”

“Estou a ver que és um tipo sábio. No outro dia cortaram este mato todo. Aqui em volta do caminho. Fiquei tristíssimo. Parecia-me muito melhor como estava. No entanto, pela manhã, vieram os melros, que se banquetearam com uma miríade de insetos. Foi um festim.”

“E julgas que, por ser noite, não estão aqui os melros?”

“Talvez não.”

“Talvez sim.”

“É exatamente isso.”

“Fuma esses três cigarros e o teu desejo realizar-se-á!”, disse por fim o mendigo, rindo à gargalhada, enquanto se afastava na direção oposta.

Que doido varrido. E pensava eu que tinha os parafusos mal apertados.

Recebo nova mensagem da rapariga: “pk não me ligaste de volta ?”

Respondi-lhe: “Não me apeteceu”.

Um segundo depois o telefone começou a tocar:

“Sim?”

“Dizem que depois de amanhã vai chover.”

“Por acaso adoro chuva.”

“Também eu.”

“Telefonaste-me para dizer isso?”

“Não é razão suficiente?”

“Por acaso ainda não me tinhas dito nada de tão importante.”

“Também acho. As pessoas subestimam a necessidade de conversa de merda. Não há nada mais eficaz para conhecer outra pessoa do que fazer conversa de chacha.”

“Quer dizer que isto era uma armadilha?”

“Pode dizer-se que sim. Mas mesmo sabendo-o, não a poderias evitar.”

“Não há atividade mais perigosa do que dar-se a conhecer.”

“Porque dizes isso?”

“Podem roubar um pouco de ti.”

“Não te pertencia.” 

“Mas pode perder-se para sempre. Adeus, até logo.”

“Não desligues!”

Desliguei.

O ar da noite está fresco. Ainda ontem estava um calor terrível, como se tivesse chegado o verão. Alinho os meus três cigarros no parapeito da janela: pai, filho e espírito santo. A besta está em todo o lado e a trindade é a sua marca. A besta é o homem.

Pego num dos cigarros, hesitante, e levo-o à boca. Agarro no isqueiro e acendo-o. Faço tudo isto com uma lentidão premeditada. Com se esperasse que alguém me impedisse. Ninguém o faz. Nada pode impedir um homem de fumar o seu cigarro de encontro ao frio da noite. Quase inexplicavelmente todos os ruídos cessam. Já não passam carros. As pessoas desapareceram. O cigarro queima.

A campainha da porta começa a tocar insistentemente. Mas não sou capaz de fazer qualquer movimento. Hipnotizado pelo halo incandescente do cigarro, que toma proporções cada vez maiores, gigantescas.


Acordo vestido em cima da cama. Lembro-me apenas da ponta vermelha do cigarro de encontro ao negro da noite. Depois disso, mais nada. Sinto a boca seca, como se estivesse de ressaca.

De repente, oiço o barulho do chuveiro. Está mais alguém em casa. Levanto-me cambaleando, com as pernas ainda dormentes, e vou até à casa de banho. A porta está entreaberta e uma adolescente toma banho. Oiço uma voz de rapaz, vinda da cozinha. Estou em casa dos meus filhos.

Tento esgueirar-me dali. Não faço ideia onde estão os meus sapatos ou a camisa. Passo por uma pequena sala e dirijo-me para a porta de saída.

Para meu terror, a voz da cozinha aproxima-se. Oiço-a mesmo por trás de mim. Rodo a maçaneta lentamente, tentando evitar qualquer barulho.

“Pai? Onde vai assim vestido?”

Estaquei por momentos. 

“Levar o lixo.”

“Qual lixo, pai?”

“Onde estão os meus sapatos? Já venho!”

Engoli em seco e saí porta fora, correndo descompassadamente pelas escadas abaixo.  Estes cabrões não me apanham! Os comprimidos outra vez, não.

Quando cheguei à rua corri na direção da minha casa. Trezentos metros através dos jardins. De vez em quando olhava para trás, para perceber se estava a ser seguido. Não estava.

Cheguei finalmente ao meu prédio. Uma vizinha saía nesse momento para passear o cão. Abrandei o passo, para evitar explicações. Mas depois pensei que não a conhecia e disse-lhe apenas bom dia. Estava tão preocupada com a merda do cão, que nem sequer olhou para mim.

Quando entrei em casa, estava um tipo exatamente igual a mim a fumar à janela. 

“Segundo cigarro” disse, rindo-se de forma grotesca. Tinha os dentes todos amarelos e podres. 

Voltei a sair, fugindo escada abaixo, com o coração cada vez mais acelerado. Demasiado confuso, corri até à bomba de gasolina para procurar ajuda.

Estão várias pessoas na fila, que ignoro, e dirijo-me ao caixa.

“Oiça, tem de me ajudar!”

“Ó amigo, a fila é lá atrás”, diz um dos tipos que estava na fila com uma t-shirt demasiado apertada para o seu tamanho.

“Vai-te foder, ó badocha!”

Ele apressa-se na minha direção com a ideia de me pôr um olho negro. Os outros tentam impedi-lo, embora tentando manter a distância de segurança, o que resulta numa dança idiota.

“Deixa estar o velho. Deixa-o estar. Não vês que não está bem?!”, diz uma senhora de cabelo louro pintado e pele anosa, que deveria ser pouco mais nova do que eu.

Controlado o outro tipo, voltei-me novamente para o caixa. Este baixou os olhos para o postigo, por onde dispensava as mercadorias, e segredou-me:

“O seu último cigarro…”

Peguei imediatamente nele e continuei a minha corrida, agora na direção do cemitério. Tinha já os pés doridos e encostei-me ao muro, ofegante.

Era manhã cedo e o ar estava fresco. 

Levei a mão ao bolso das calças e encontrei o isqueiro. 

Acendi cerimoniosamente o último cigarro, lembrando a estúpida profecia do mendigo, e fechei os olhos. Talvez fosse uma armadilha. Ou talvez este fosse apenas o segundo cigarro.

Quando abri os olhos, tinha três pessoas à minha frente: a rapariga do banho, o rapaz da cozinha e a minha cópia – os meus filhos e o meu irmão.

“Onde está a Maria?”, perguntei.

“O cabrão do velho está completamente pírulas.”, disse a minha cópia. “Na verdade, sempre foi. Mas está bem pior desde que a megera bateu a bota. Anda lá para casa. Não podes estar sozinho.”


Pegaram em mim e arrastaram-me até casa. Despiram-me e deitaram-me na cama, com um lençol branco por cima. Já agora tapem-me também a cara, como fazem aos mortos, pensei. Filhos da puta. Quem é que estes filhos da puta pensam que são? Sei muito bem o que ando a fazer. Não podem esperar que morra? Querem enterrar-me em vida?

Dizem que não bato bem da cabeça. Só me dá vontade de rir. Que não bato bem da cabeça. É tão fácil arrumar quem não se conforma à norma: não bate bem da cabeça. Se vejo coisas que os outros não veem, é porque devo imaginá-las, e se acho que são reais, se por um segundo dou crédito à minha imaginação, devo tomar uns comprimidos para me acalmar.

Aí vêm eles, os comprimidos. E um terrível copo de água. Translúcido. Quando os tomo a minha mente fecha-se, torna-se numa noz, infinitamente pequena, opaca, impenetrável.  

As pessoas sentem-se inseguras por verem tão pouco. Escapa-lhes tanto. As sementes de choupo não lhes parecem neve e os cigarros não abrem buracos no lençol negro da noite.

Não saem do pé de mim até que tome os comprimidos. Guardo-os na bochecha. Quando me pedem para abrir a boca e mostrar a língua, engulo-os em seco. Enrolo-me na cama, virando-lhes as costas. Fecham então as persianas e correm as cortinas. Esperam que durma. Mas não é sono o que me espera. Sinto-me apenas embalsamado em vida. 

Saem do quarto.

O telefone, inadvertidamente deixado na mesa de cabeceira, estremece. Agarro-me a ele com se fosse a minha última réstia de vida. Daqui a minutos não conseguirei articular um único pensamento.

Uma mensagem da rapariga: “Amanhã de manhã junto à porta do cemitério. 11 horas.”

Não posso evitar e faço mais um cálculo: 660 minutos. Se for a besta, chega 6 minutos atrasada.


Há dois dias que chove sem parar. Nem parece primavera. Os meus filhos mantêm-me refém. Ameaçam-me com visitas ao hospital. E o hospital é obviamente pior. Não é possível enganar as enfermeiras. E é tudo muito frio. Os corredores do hospital são um dos sítios mais inóspitos à face da terra. Ouvem-se gritos e é impossível não imaginar a aflição de quem os solta. Hoje escapei-me aos comprimidos. Deixaram-me sozinho na casa de banho e coloquei os dedos à garganta. Normalmente, nem me deixam mijar de porta fechada.

Estou supostamente numa crise. Para o caralho que os foda, uma crise… 

Hoje consegui finalmente olhar pela janela. Os melros continuam que nem doidos, debicando insetos na erva aparada. Lembro-me das palavras do mendigo: “E julgas que, por ser noite, não estão aqui os melros?”. A falta de luz. É preciso queimar buracos na noite. É tudo o que temos. 

Disse que chovia há dois dias sem parar, mas talvez tenha sido apenas impressão minha. Na minha cabeça chovia sem parar, matraqueando nos estores, assobiando nas janelas. O vento não assobia como os canários, nem sequer como os homens. O vento é terrível. Não é como a chuva.

Vou tentar convencê-los a deixarem-me ir para casa. Para isso, tenho que tentar ser o mais normal possível. Ver concursos de televisão em que os concorrentes trazem prendas para o apresentador. Fingir-me interessado nas notícias. Não lhe posso dizer obviamente que o vento é terrível, ou que a besta está aí, por todo o lado.

Faltei ao encontro com a rapariga. O que terá pensado?

Bah, nem sequer sei o que ela queria. 

Claro que não acho que ela seja realmente o diabo, ou a besta. Pareceu-me até bastante sensata. O mendigo também. Desconfio que não pede por necessidade, mas sim por escolha. São afinal duas formas curiosas de conhecer pessoas. 

É claro que eu não gosto de conhecer ninguém. Dá demasiado trabalho.

Depois da Maria, para além da Maria, tudo se tornou mais difícil para mim. Roubou um bom pedaço de mim. Levou-o com ela para debaixo da terra. Aquilo que eu era com ela, não poderei ser com mais ninguém. É por isso que escolho viver sem pensar nela. Sem pensar nos nossos filhos, sem pensar no meu irmão. Quero estar absolutamente sozinho. Não deixarei que roubem mais nenhum pedaço de mim.

Passa um bando de pombos a voar a toda a velocidade por entre os aguaceiros.

Desde que a Maria morreu que não dirijo a palavra ao meu irmão. Não o posso suportar. Mais do que tudo incomoda-me a nossa semelhança física. Causa-me asco. É como olhar-me ao espelho. Nunca o perdoarei. 

“Está tudo bem, pai?”

“Sim, claro.”

“Estás com um ar cansado. Devias deitar-te um pouco.”

“Já vou filha.”

Nuvens baixas e azuis, carregadas de chuva, deslocam-se sobre o estuário. Os vários tons de azul (do rio, das nuvens, do céu) e a efervescência da chuva cravam-se na minha retina. É assim que imagino o céu da boca, já que não o posso ver. O céu da boca – linda expressão – é-nos desconhecido. 

“O vosso tio está cá em casa?”

“Vá deitar-se um pouco, pai.”

“Eu estou bem, eu estou bem. Vamos ver um pouco de televisão?”. Mas fui deitar-me.

Peguei no telemóvel. Abandonado há já dois dias em cima da mesa de cabeceira e sem carga. 

Senti um cansaço súbito. Um desejo irresistível de fechar os olhos… Caí na cama e sonhei com o meu irmão. Teimava em empurrar-me e provocar-me, tentando suscitar alguma reação em mim; mas eu, como tantas vezes nos pesadelos, era incapaz de mover-me. Acabou por empurrar-me para uma valeta e pisar-me a cara. Acordei nesse momento. Ainda mais cansado.

Ligo o telefone ao carregador, ressuscitando-o. Começa imediatamente a tocar. É a rapariga.

“Estou?”

“Está tudo bem contigo?”

“Sim. Quer dizer, não.”

“Percebo. Vi-te no outro dia à porta do cemitério.”

“Ai sim? Como é que soubeste que era eu?”

“Conheço-te há muito tempo. Desde sempre, pode dizer-se.”

“E eu conheço-te a ti?”

“Esqueceste-me, mas conheces. Sou como uma irmã mais nova.”

“Detesto quando as alucinações me falam por enigmas.”

“Achas que sou uma alucinação?”

“Com certeza. Não falas como uma pessoa banal.”

“Nem todas as pessoas são banais.”

“Não sei se concordo. Ainda há pouco passou um bando de pombos a voar a toda a velocidade por entre a chuva. Isso é o tipo de coisa capaz de abrir um buraco na noite. Oiço-os queimar no ar. Incendeiam-se em pleno voo, apesar de manterem a sua plúmbea aparência. Já te falei das sementes de choupo? E do canto dos pássaros? E do morrão do cigarro queimando gigantesco de encontro ao negro da noite? Por vezes fica tão grande que é impossível movê-lo. Toma conta de tudo.”

“Sei disso.”

“Como?”

“Daqui a pouco à porta do cemitério. Arranja maneira de sair.”

Desligou.

Os meus filhos estavam na cozinha, ocupados em torno do lava-loiça e da panela da sopa. Brincavam um com o outro. Demasiado novos para tomarem conta de mim. Demasiado novos para tomarem conta deles próprios. Apesar de tudo, a minha empatia não é real. São, afinal, apenas os meus carcereiros. E todos os carcereiros são uns filhos da puta, independentemente das suas boas intenções. 

O exaustor estava a funcionar e eu saí de mansinho.

Quando cheguei à rua percebi que estava de pijama. Senti por momentos vergonha.

Logo depois encontrei o mendigo.

“Olá, como vais!?”, disse-me de chofre.

“Arranjas-me um cigarro?”

“Claro, meu amigo. Raramente fumo. Ainda tenho o maço que me deste no outro dia. Toma lá. O teu terceiro.”

Acendeu-me o cigarro. Aspirei e senti a nicotina espalhar-se pela corrente sanguínea.

“Fazes-me companhia? Não peço isto a muita gente. É sinal de que sinto verdadeiro apreço por ti.”

“Com todo o gosto. És um tipo porreiro.”

“Não exageres.”

“Nota-se que és um tipo que vê a essência das coisas. Gosto disso. A maior parte destes papalvos não vê para além da superfície. Passam o tempo a limpar o pó das suas estantes, cheias de livros por ler.”

“Ah pois vejo. Vejo demais. Mas ninguém acredita que os pombos se incendeiam em pleno voo.”

“Ou que os melros não dormem à noite. Escavam buracos. Sei bem o que é isso.”

Calamo-nos durante algum tempo, continuando a caminhar na direção do cemitério.

“Vou deixar-te. Não entro aí – nem morto”, disse sorrindo.

Um carro funerário tinha acabado de passar e o portão estava aberto.

Caminhei de forma errática por entre as sepulturas. Mármores e epitáfios. Crucifixos. Livros fingidos, de pedra, com fotografias redondas dos defuntos. “Aqui jaz…”. “Memória dos seus queridos filhos e nora”, é importante identificar os contribuintes. 

Ao fundo, junto à campa da minha mulher, estava o meu irmão. Ele viu-me de imediato também. Lançou-me o habitual sorriso podre, escarnecedor, que, como o próprio sabia, era para mim absolutamente assustador. Ainda assim, tentei manter a compostura e dirigi-me a ele.

“Estás bonito. De pijama num cemitério…. Queres um cigarro? Completamente doido. Sabes disso, não sabes? Sabes que és completamente doido? Estás com medo de mim? Hã!? Posso empurrar-te e espezinhar essa cara. É isso que queres não é!?”

Limitei-me a ouvir, incapaz de replicar.

“Não falas comigo, bem sei. Mas não fui eu quem a matou. Aqui a megera. Sabes bem disso. Sabe-lo muito bem.”, pronunciou estas últimas palavras articulando cada uma das sílabas: “Sabe-lo muito bem.”.

Eu sabia. Aqueles dentes, amarelos e podres, eram os meus.

Avançou de repente na minha direção, gritando, e eu recuei assustado, como sempre. Tropecei e caí. Devo ter batido com a cabeça. 

Acordei mais tarde, deitado entre os túmulos. Uma jovem rapariga, vestida de negro, observava-me com aparente calma. Pestanejei os olhos. Adivinhei quem era.

“Não cheguei a perguntar-te o nome”, disse-lhe ainda meio atordoado.

“Isso é coisa de somenos.”

“Um nome não é coisa desprezível. Nero César, por exemplo. Nos alfabetos grego e hebraico para cada letra há um número correspondente. Somando as letras de Nero César temos 666, o número da besta. Qual é o teu nome?”

“Prefiro não o revelar.”

“Deves estar curiosa: que faz um velho deitado de pijama no meio de um cemitério? Um louco com certeza.”

“Já nada me espanta.”

“Isso é preocupante.”

“Eu sei.”

“Este aqui é o túmulo da minha mulher. É a primeira vez que o visito depois do funeral.”

“Sentes falta dela?”

“Ela é uma falta em mim. Irrecuperável. É claro que não há mais ninguém para culpar. Nem os dentes podres do meu irmão. Fui eu que a matei. Podiam ter escrito aqui nesta pedra: Aqui jaz Maria da Conceição, assassinada pelo seu querido marido.”

“Isso é verdade?”

“Absolutamente verdade.”

“O que aconteceu?”

“Não sei bem, estava demasiado bêbado ou drogado. Não se quer deitar aqui a meu lado?”

E deitou-se. Ficámos toda a tarde a olhar para o céu azul.


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