O MISTÉRIO DOS LIVROS PERDIDOS NO JARDIM

 Literatura 2017: balanço mais-que-imperfeito | AbrilAbril


Todos os dias encontrava um livro perdido no jardim.

Comecei por entregá-los no café, na esperança de que o descuidado proprietário os viesse reclamar. Não aparecia ninguém. A inusitada repetição de tão negligente abandono acabou por alterar o percurso da minha caminhada matinal. Não queria que mais ninguém os encontrasse. Afligia-me até, pensar que tal pudesse acontecer.

Levantei-me de madrugada. Saí de casa quando a primeira luz da manhã se coava por entre os loendros ao fundo do jardim. A iluminação pública estava acesa. Cruzei-me com um ou dois carros, sonâmbulos. Nos blocos de apartamentos, ao longo da avenida, as janelas acendiam-se lentamente; esparsas, intumescidas. Um pouco envergonhado pela hora e despropósito da minha excursão, atravessei a rua para não me cruzar com uma senhora que passeava o cão vestida com um robe cor-de-rosa e pantufas. Imaginava que teria de rondar disfarçadamente pelo jardim durante muito tempo para surpreender o abandono de mais um volume. No entanto, encontrei de imediato um livro no banco de jardim: Auto-de-fé, Elias Canetti.  

Os livros eram deixados durante a noite. Não poderia ser de outra forma. 

Intrigava-me, obviamente, as razões que levariam alguém a proceder deste modo. Estava fora de questão que fossem deixados por mero descuido. Os livros eram de vários géneros: romance, poesia, ensaio, filosofia, mas todos eles poderiam ser considerados livros sérios, clássicos de qualidade, e não o chamado papel de embrulhar peixe, que se publica a um ritmo frenético nos dias de hoje. Fá-lo-ia com intenção formativa, para partilhar o saber com outros? Os transeuntes, instigados pela felicidade de encontrarem um objeto de curioso valor, levá-los-iam para casa: aí, depois de parco ou faustoso jantar, poderiam cativar a sua atenção e constituir um poderoso amparo para o seu espírito; ou talvez lhes tivesse reservado um igual abandono, constituindo apenas mais um acrescento a um pecúlio sem sentido. Poderia ser um tesouro incompreensível (mas um tesouro) para um iletrado; ou ganhar pó nas prateleiras sobrelotadas e pouco lidas de um pequeno burguês, um homem de ideias práticas.  Mas tudo isto são meras suposições. Seria o abandono dos livros motivado por um sentimento de inutilidade? Talvez o seu proprietário renunciasse aos calhamaços sem préstimo, porque já não lhes ofereciam qualquer consolo. Talvez não tivesse espaço para mais livros. Talvez a sua mulher, despeitada pela falta de atenção do marido, que só tinha olhos para os respeitáveis caracteres impressos, perpetrasse, por ciúme, uma exemplar vingança.

Decido levar o livro para casa. De qualquer forma, não adiantava de nada deixá-lo no café. Esperava talvez algum passo de mágica, que algo de sobrenatural acontecesse quando estivesse sozinho com o livro. Talvez me enfeitiçasse. Talvez as suas páginas ganhassem vida. Talvez me estivesse reservada uma série de sete anos de azar por usurpação ou desrespeito ao abandono, que devia com certeza ter as suas razões. Tinha um pouco de medo, o que era disparatado, pois todas estas ideias não tinham obviamente qualquer sentido e eu sabia disso. 

Abri o livro em busca de alguma identificação do seu proprietário. Uma data: setembro de 2015; e duas iniciais rasuradas recentemente: NR. Talvez se possa deduzir, pela tentativa de rasura, que o mesmo não queria ser identificado. Ou que alguém, entretanto em sua posse, quisesse obliterar a identificação do proprietário original. Tudo suposições. 

Os livros apareciam em vários locais, embora sempre no jardim. Quer dizer, eu só os encontrava no jardim, porque só aí os procurava. Mas quem me diz que não poderia haver livros abandonados por toda a cidade? Quem me diz, afinal, que este não era o início de um movimento em grande escala? E se toda a gente começasse a abandonar os seus livros? Por todo o lado, à chuva e ao vento; e não houvesse ninguém disposto a recolhê-los. A ideia afligia-me. Era a negação da eternidade. Todos os livros, todas as palavras e frases, reduzidas a uma humilde mortalidade.

O primeiro livro estava em cima de um muro (D. Quixote, Cervantes). O segundo em cima de um baloiço (A Gaia Ciência, F. Nietzsche). O terceiro na relva (Clepsidra, Camilo Pessanha). O quarto no meio de uma sebe (Fausto, Goethe). O quinto junto a um bebedouro (Castelo, F. Kafka). O sexto no banco de jardim (o mencionado Auto-de-fé). Todos em locais facilmente visíveis. Todos razoavelmente intactos, fora os normais sinais de manuseio. Se os quisessem realmente destruir haveria métodos mais eficazes: desde logo o fogo. Havia, pois, algo de humano no seu abandono. Não havia ódio, não havia amor, não havia indiferença. Não sei o que havia, portanto.

Voltei para casa. Quando a minha mulher se levantou, eu estava sentado à mesa da cozinha, olhando hipnoticamente para o livro ali pousado. Comecei a folheá-lo metodicamente, lendo trechos. Falou durante algum tempo, mas não ouvi nada. Peguei no livro e saí de casa. Não queria deixá-lo sozinho com a minha mulher. Estava decidido a desvendar aquele mistério. Nem que para isso tivesse de passar todo o dia no jardim. 

No caminho para o jardim, a esta hora bastante frequentado, olhava com desconfiança para todos os transeuntes. Avaliava o peso e formato das suas mochilas, tentando entrever se transportariam algum livro. E abanava ostensivamente o volume que trazia na mão, revirando a capa amarela na sua direção, enquanto perscrutava no seu olhar a mínima agitação – esperando que alguém se denunciasse. Aqueles, poucos, que transportavam livros na mão, de forma clara e ostensiva, eram os menos suspeitos, embora tentasse adivinhar se o título condizia com o leque de livros abandonados ou se se coadunava com o aspeto do portador. 

O sol estava quente. Por duas vezes parei à sombra dos plátanos que ladeavam a grande avenida. Não havia vento. Parado, olhava para um lado e para o outro, continuando o meu estudo dos pedestres. Havia muita gente, muitas horas e muitos locais de acesso ao grande jardim. Não seria nada fácil descobrir o meu homem (ou mulher) ... Talvez fosse impossível. Embora dispusesse de bastante tempo, pois estava aposentado há alguns anos, não dispunha, contudo, da saúde necessária para uma tarefa destas. 

Assim que cheguei ao jardim, deparei-me com um livro (O Homem sem Qualidades, do Musil) abandonado sobre a relva. Enquanto me aproximava, contudo, o seu proprietário, um jovem pai, voltou e recolheu-o do chão. Afinal, não estava abandonado. Ou talvez a minha presença tivesse impedido o seu abandono. Um pouco embaraçado, cumprimento o jovem com um bom dia, seguido de uma pequena simulação de vénia, descobrindo por instantes a cabeça.

Do outro lado da sebe, uma menina corre com um grande livro debaixo do seu braço. Sigo-a apressadamente. Quase caio ao transpor a sebe. Faço um pequeno rasgão nas calças e arranho a mão. A pequena olha para trás com um ar assustado. As suas perninhas gordas apressam-se e junta-se à mãe, que empurra um carrinho de bebé. Transpiro abundantemente, manchando a camisa, e resolvo despir o casaco. A mãe, alertada pela pequena, olha para trás e estuga o passo. Percebo que estou a assustá-las e que o meu comportamento é simplesmente paranoico. 

Caminho apressadamente ao longo do parque, tentando acalmar-me. Contorno uma pequena colina e sento-me num banco. Pouso o livro a meu lado. Poderia separar-me dele?

Decido abandoná-lo. Levanto-me e desço na direção do ribeiro. Agacho-me na obscuridade de um salgueiro, procurando um ponto de observação para o banco de jardim. Alguém haveria de encontrar o livro. Alguém haveria de o levar para casa. Porque haveria de ser minha responsabilidade cuidar de um livro abandonado?

Deixem-me imaginar quem o recolherá. A imaginação, embora menos surpreendente do que a realidade, é também mais lisa para o próprio. Concedam-me o momento. Deixem-me imaginar como será o próximo leitor: um intelectual; um velho como eu; um jovem; uma mulher, as mulheres são capazes de um carinho superior, mas talvez não pelos livros. Não sou afinal capaz de imaginar o próximo leitor.

Talvez seja uma grande ideia deixar os livros ao abandono, na rua. A sua vida nas prateleiras é essencialmente aborrecida. Esperam longos dias e noites pela carícia de um dedo indicador. Inertes repositórios de tempo e pó – que são afinal a mesma coisa.

Toda a cidade poderia transformar-se numa gigantesca biblioteca. Conseguem imaginar? Toda a articulação de um livro enrugando um banco de jardim. Por todo o lado, todo o esforço, numa sumptuosa asperidade. Parece-me agradável.   

Abandono a sombra do salgueiro e dirijo-me ao café.

Pergunto à simpática empregada se alguém veio recolher os outros livros: ninguém.

Sugiro-lhe que constitua uma pequena biblioteca de circunstância, para clientes. Poderá constituir um consolo para um leitor surpreendido por uma espera que não antecipava. A empregada sorriu. Era uma boa ideia.

A duas mesas de distância uma jovem lia o ‘The Bell Jar’, da Sylvia Plath. Lembro-me bem de o ler. Nesse ano apaixonei-me pela Sylvia. Seria capaz de abraçar longamente, de a beijar até à supuração. Sempre que pego num livro de Dostoiévski, qualquer um, reencontro uma alma negra, tão negra e tão irmã. Há pessoas capazes de se encapsularem. De se ordenar e desordenar por efeito da escrita e da leitura. Almas liofilizadas. Os índios norte-americanos acreditavam que a fotografias lhe roubariam a alma. Espanta-me o fascínio temerário com que se escreve e lê. Não poderá a alma do escritor ficar cativa das suas frases impressas. E não poderá um leitor ser de tal forma contaminado por um livro que se confunda com ele. Até ao ponto de não conseguir ajuizar que parte do livro ficou nele, mas também, que parte dele ficou no livro.  

O mistério dos livros perdidos no jardim, deixou de me interessar. Surpreendia-me apenas que não me tivesse lembrado disso antes. Porque haveria as pessoas de ter prateleiras cheias de livros em casa? 

Desde esse dia, sempre que volto a casa, constato que perdi mais um livro. 

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