SEM TÍTULO


Não há nada de dramático e isso é que é dramático. Não acontece nada. Uma vida igual a tantas outras. Com mulher, filhos e pequenas chatices. Percebes finalmente, sem qualquer dúvida, que a tua vida não será extraordinária. A tragédia é que, até esse momento, nunca desejaste outra coisa. Por isso tens o que mereces.  Quiseste afinal ser como todos os outros.  Ter uma casa e um carro por pagar, e um frigorífico e uma máquina de lavar pratos. Vidros duplos, porque afinal toda a gente tem. Um emprego estável, onde se ganhe bom dinheiro, mas que agora não significa nada para ti e que dificilmente fará sentido para o mundo. Uma mulher todos os dias na tua cama, mas com quem afinal não fazes amor. Os miúdos a sugar a tua paciência até ao ponto de sentires que tens uma esponja seca no lugar do cérebro. O fastio dos carrinhos de supermercado cheios. Das festas de aniversário todos os fins de semana. Das sobras do jantar. Dos baldes de lixo cheios de plástico e cartão para reciclar.  De esperar nos semáforos. Das filas do almoço.  De mijar e cagar todos os dias, interminavelmente...

E ainda por cima és cobarde. Sempre foste um cobarde. Não te arriscas a perder nada. Nem o que não queres. Nem o que não tens. Nem o que não precisas. Tens medo de estar enganado. De ficar sozinho. De mudar. De perder.

Nunca acreditaste em ti. Procuraste sempre a confirmação dos outros.

E agora é tarde de mais – pensa o cobarde. Agora não há nada a fazer – diz aquele que prefere morrer a sentir-se enganado, a imaginar que haja quem se ria dele. 

E assim continua a vida. Até estalar.

Não se atrevam, porém, a dizer que me conhecem, pois isso é impossível. Não conhecem esta angústia que tudo quebra. Sinto a minha pele a rachar como um vaso. É impossível fugir de mim mesmo.

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