Mãe


Tudo começou com a minha mãe e tudo acabou com ela. As mães são o princípio e o fim do mundo. É ainda um amor obsessivo e abnegado que busco; um amor que se iguale ao meu, que se iguale ao dela. Preciso de ser obsessivamente amado e de obsessivamente amar; porque sou de menos para mim – esgoto-me –, mas também porque não me contenho e transbordo.

Quando a minha mãe morreu senti-me, mais do que nunca, profundamente sozinho. Como se não houvesse mais ninguém no mundo, como se fosse o último homem na terra. Deixei então a minha mulher e filhas. Deixei-lhes a casa e todo o meu dinheiro e aluguei um pequeno apartamento nos subúrbios.

Queria estar sozinho, isolado; realmente isolado. Em certa medida acreditava que começara ali, naquele preciso momento, o fim da minha vida. Como um animal ferido, buscava uma toca, não para morrer, mas para que por um qualquer milagre pudesse renascer.

Trabalhava apenas para ocupar o tempo e pagar a renda.

Lia e escrevia. Quando me sentia demasiado angustiado saía para correr. Corria depressa, tão depressa quanto conseguia, empenhando toda a minha energia, toda a minha concentração, movendo as pernas até à exaustão – então, por breves momentos, nada mais existia: a memória e a inteligência desapareciam. Seguia-se uma dormência equivalente à de um festim.

Será possível estar tão apaixonado por alguém ao ponto de nos esquecermos de nós próprios?

Não entendo nada do que escrevo. É por isso que o faço. Para que alguém me explique. Insisto demasiado no autoconhecimento – é um erro meu, eu sei. De nada serve compreendermo-nos a nós próprios. Iremos talvez agir de outra maneira? Vamos querer ou fazer outras coisas? Sei que não. Não seria mais do que um fingimento, uma ficção. Basta já o que escrevo. Gostava de não precisar de correr ou escrever. Dormente de paixão é como gostava de estar. 

A minha mãe sofreu muito. Tinha dores atrozes, mas recusou sempre ser operada. Como o podia suportar?

Faço mal a mim mesmo. Fecho-me. É preciso muita coragem para chegar até ao meu coração. Porque haveria alguém de o fazer?

Mas há tanta gente sozinha. Não serão diferentes de mim – eu não sou especial. Não me servem – não preciso delas, nem elas precisam de mim. Preciso de alguém que transborde de alegria. Não de uma alegria idiota, de quem nada compreende. Mas uma alegria genuína, inteligente. Ou então de melancolia, gosto tanto de mulheres melancólicas. Talvez seja isso que eu quero dizer. A melancolia é uma aceitação inteligente da tristeza. Acho eu. Converte-se então numa espécie de alegria. Sei lá…

O que é uma mulher bela? Não é possível escrevê-lo; é impossível de definir uma mulher bela. Não é uma mulher perfeita. Não é magra ou esbelta ou voluptuosa. Não é… Não tem uma cara perfeita, um cabelo assim, ou uns olhos exóticos. Nada disso é importante – como é que não o percebem. É uma mulher que nos inflama a alma. Os homens, acreditem, excitam-se pelas coisas mais improváveis: a começar pelo que elas dizem ou não dizem – as mulheres carregam o pesado fardo de não dizer, de não confessar; como se movem e como sorriem ou não; o arco dos seus suspiros. No meu caso também a melancolia, percebo-o agora. Amamos sempre uma imagem, não uma pessoa, e isso é terrível – para ambos. Devíamos ser impiedosos para com os nossos amores, ceifá-los à menor hesitação. Não o fazemos.

Uma mulher que nos inquiete, é disso que os homens precisam. Da mesma maneira que um bom livro não é o mais perfeito ou o mais bem escrito, é aquele que se nos espeta como um ferrão nas costelas e não nos deixa sossegados.

Vejo muitos filmes, ou partes deles. Interessa-me apenas a sua beleza fotográfica. A sua luz, a sua sombra, e aquilo em que me fazem pensar. Dispenso qualquer tipo de enredo. Cada vez mais aprecio a poesia – não a escrevo e raramente a leio, mas procuro e encontro-a por todo o lado. Aprecio a liberdade da sua forma, a ausência de uma narrativa. Mas não uma poesia qualquer: quero-a direta, sem lirismos. Procuro nas imagens, breves lampejos de algo verdadeiro, de poesia. Da mesma forma, quando escrevo, sob a mancha narrativa de um conto, esconde-se na maior parte das vezes um poema. Não há uma linha narrativa bem definida, a história não vai a lado nenhum, o que por vezes causa alguma perplexidade, incompreensão.

E a música. O tão venerado silêncio é agora algo que não posso suportar. Estou sempre a ouvir música. Não há nada mais importante na escrita do que o seu ritmo. Da mesma forma que na música é o ritmo que nos predispõe ao movimento corporal, também na escrita é o ritmo que coloca o cérebro em andamento. A cadência é essencial. Dai balanço aos vossos leitores, colocai-os a toda velocidade, e depois atirai-os de encontro a uma parede. Ou embalai-os num compasso de morte, sonolento, contido, abandonado, e confesse-lhes uma terrível violência – sem adjetivos.

Queria falar do meu pai. Já não o tenho comigo há muito tempo. Partiu cedo e deixou-me amputado. Quando corro, penso que teria orgulho em mim. De resto sinto apenas culpa, como uma dor fantasma. Nunca o amei como à minha mãe. Da mesma maneira que as minhas filhas também não me amam a mim da mesma forma.

Fui suficientemente corajoso para não me afastar da minha mãe quando senti que o fim estava próximo. Achei que lhe devia retribuir fisicamente todos os seus cuidados, todo o seu amor. Alimentei-a, lavei-a e fiz-lhe companhia durante longos meses, até ao fim.

Lembrei-me agora do seu desespero quando o meu pai morreu. Os sapatos desapareceram-lhe dos pés, gritou, caiu ao chão, esperneando, gemendo nos nossos braços (meus e de meu irmão) – ainda hoje é esta a minha definição de desespero.

Ser velho, decair, é a derradeira lição de humanidade. Já morreram demasiadas pessoas. É até difícil de acreditar…

Tenho uma obsessão com o sono. É um símbolo, sei-o. Como pode alguém dormir? Não há regra geral condições para dormir. Desde criança que tenho um sono leve. A mínima desconfiança de que a minha mãe se afastava era o suficiente para me despertar. Agora canso-me até não conseguir suster as pálpebras e só então me deito – sozinho. Inquieta-me a ideia de passar a vida a dormir.

Não consigo, regra geral, dormir em público; é simplesmente impossível. Mas no outro dia adormeci no autocarro, a caminho de casa. Como fui capaz de adormecer? Estava demasiado cansado. Ao meu lado estava uma mulher. A sua pele era ocre, cor de terra. Acho que o seu cheiro doce me embalou. O cheiro das mulheres é por vezes excitante, outras vezes acalmante, o que talvez seja afinal a mesma coisa. Começou a falar comigo quando despertei. Tinha uma voz rouca, que se fragmentava – a voz é por vezes o mesmo que os olhos. Percebi que era minha vizinha. Nunca tinha reparado nela. Às vezes acontece-nos isto: não vemos sequer o que está diante dos nossos olhos. A verdade é que naquele momento tive uma vontade irresistível de a beijar. Podia ter feito como em todas as outras vezes, com tantas outras mulheres e desejos; podia tê-lo silenciado dentro de mim, até que se apagasse. Mas coloquei-lhe a mão na face, acariciei-lhe a orelha e aproximei a minha boca dos seus lábios. Ela ficou inicialmente surpresa, mas depois correspondeu ao meu beijo, apaixonadamente, como se não desejasse outra coisa.

    a sua pele ocre
    o seu cheiro doce
    voz de madrugada
    apaga-me… apaga-me…

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