Quimera

"A quimera", 1867, Gustave Moreau

Não tenho ciúmes.
Não tenho remorsos ou rancores.
Não tenho. Não sou.
Quando nada temos, quando nada lembramos (a memória é afinal tudo o que temos em cada momento), então tudo parece simples. Mas não ter memória é afinal o mais difícil, porque mais não somos do que a sua amálgama. E então tudo se complica novamente…
Se concentrarmos toda a nossa atenção no murmurar do mundo, nas suas cores (intensas), no formigar infinito dos nossos dedos e da nossa língua, até à total sobrecarga dos sentidos, então, talvez dessa forma, as coisas se tornem mais claras, mais evidentes.
Mas ainda não é isso que pretendo. O que eu gostava era de inventar memórias que me justificassem. A todo o momento recriar-me e ser inteiro, sem pinga de fingimento, com toda a convicção reinventar-me. Ser apenas e só o reflexo coeso dos meus desejos.

– Do que é que estás a falar?

É incrivelmente complexo. Há uma série de aproximações e recuos. Insinuações e brincadeiras. Simpatias ou desejos. Poderemos estar tão enganados. Tão horrivelmente enganados. E parecer ridículos. Mas também pode ser muito simples. Tudo pode ser muito simples.

– Hã?

Não ligues. Não sei o que digo. As palavras encadeiam-se, ligam-se inusitadamente, e às vezes quase parece algo real – parece até mais do que isso, parece algo divino, como se deus (peço desculpa) falasse através de nós; mas isso é apenas porque alguma coisa de muito profundo se revelou; algo que não podemos conhecer ou perceber, revela-se subitamente por detrás de um piscar de olhos e logo se perde, descendo lentamente pela garganta como um mau pressentimento. Mas não é real. É como uma equação. A realidade é outra coisa; é algo de que nunca nos poderemos aproximar aqui. O toque dos teus cabelos, por exemplo, ou a cor dos teus olhos, o movimento dos teus dedos, o teu olhar… olha para mim – isso é real.

– Deixa-te de conversas. Deixa-te de palavras. Estou aqui…

– Mas repara. A linguagem é tudo o que temos. Os teus lábios, por exemplo, como te poderia suplicar por eles se não lhes soubesse o nome.

– Ora. Desde quando são precisas palavras para isso?

– E se estivéssemos longe, separados?

– Então não existias. É essa a realidade. Tudo o resto são vãs pretensões.

– Não achas que o único propósito da linguagem é o de cortejar as mulheres?


– Achas que uma mulher se deixa seduzir por palavras? Estás bem enganado. Tu próprio o disseste: não são reais. O seu encadeamento é furtuito. Os meus lábios não são como qualquer outra coisa, os meus lábios são; nada se lhe pode comparar e nenhuma palavra os poderá jamais definir. Ninguém os poderá perceber, não da mesma maneira; serão outros os lábios que a sua memória evoca. A comunicação é uma quimera. Ninguém percebe ninguém. Limitamo-nos a acenar com a cabeça para confortar os outros, e a nós mesmos, mas não, ninguém se entende. Entre o que eu digo e o que percebes há um deserto.

– Pareces muito satisfeita contigo própria. Se te serve de consolo, digo-te que não percebi patavina do que disseste. Lá nisso concordamos. Mas lanço-te aqui um desafio. Se não acreditas na linguagem, então também não acreditas no amor! Como podem duas pessoas amarem-se se são incapazes de comunicar?

– És mesmo estúpido. O amor é uma coisa física, presente; tudo o resto são males de amor, esses sim são amigos das palavras; não conhecem outra coisa. Quando estás sobre mim, sinto que me queres bem, e eu quero-te bem, e isso é amor.

– Mas é assim que enganamos a morte, com as palavras. E isso não é coisa pequena. Por certo concordarás.

– Não enganas a morte. Só te enganas a ti próprio. Ninguém engana a morte ou o amor. São coisa físicas, que não pensam ou sabem, não é possível enganá-las.

– Posso não enganar a morte, mas engano a morte em mim, ou o amor em mim, e isso é tudo. Isso é o que basta.

– Oh, é impossível explicar-te. As palavras não são suficientes. Seria precisa toda uma nova linguagem… Nenhuma verdade pode ser escrita. Perseguimos a sombra de uma quimera. Apetece-me gritar. Apetece-me rir. Apetece-me chorar.
Como estás enganado. Mortalmente enganado.

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