Na ponta da minha língua
Sinto-me paralisado.
Sete palmos de terra sobre mim. Peso-os na ponta da minha língua.
Bato ao de leve no caixão. Ninguém me ouve. Devo continuar?
Será isto um sonho? Uma alucinação?
Não é de admirar que alguém me tenha tomado por morto. Talvez até nem se tenham apressado a enterrar-me. Estas coisas demoram o seu tempo. Seguem os seus trâmites. Mas devia ter feito mais. Talvez pestanejado. Ou tossido. Tudo menos ficar ali parado, de olhos vidrados, sustendo a respiração. A princípio era um conforto, e depois perdi os sentidos, esqueci-me de mim. Talvez não acreditem, mas foi isto que aconteceu.
Parece-me tarde demais, mas será ainda possível que alguém, movido por mórbidos desejos, se lembre de me desenterrar? Só para confirmar que está tudo como devia ser e que, por um qualquer engano, não fui enterrado em vida. Devia haver um procedimento bem definido para estes casos. Não é bom deixarmos estes assuntos ao cuidado de cada um. Quem sabe o que aconteceria se fosse visitado por um desses ladrões de túmulos. Se não morresse de susto, aposto que regularizava rapidamente a minha situação e prosseguia com o seu trabalho.
É extremamente incómodo que eu próprio não possa por fim a este tormento. Terei que esperar pela fome e pela sede. Queira deus que não chova… Como será morrer de sede? Suponho que deve ser antecedido por uma qualquer espécie de demência. É o momento antes (imediatamente antes) dessa demência que eu temo. É desse momento, dessa pequena partícula de tempo, que todos temos medo.
O ar está corrompido. Sinto que o oxigénio é escasso, servido em pequenas porções. Por onde entrará? Já teria tempo de morrer sufocado. Ou talvez a minha perceção de tempo esteja alterada – na imobilidade tudo nos parece infinito. Por entre a terra há pequenos interstícios – não o suficiente para que a luz penetre. O próprio caixão não será inteiramente hermético. É preciso que a terra e os vermes façam o seu trabalho de decomposição.
A escuridão, essa, é completa. Quem me dera ter um fósforo. Já fumava um cigarro. Será noite ou dia? Alguém me pode dizer?
Estou esticado e é impossível virar-me. Não tenho espaço para me colocar de lado ou para chegar com as mãos até aos pés. Desembaracei-me dos sapatos. Desapertei a gravata e todos os botões que consegui. A imobilidade é dolorosa. Pressinto as escaras que se vão formando nas minhas costas, nádegas e calcanhares. O sangue a estagnar. As articulações, sobretudo os joelhos, doem-me.
Oiço passos lá em cima. As botas de alguém moendo a areia debaixo dos pés. É quase impercetível. Gritei. Com todas as minhas forças, gritei. Se conseguia ouvir os seus passos talvez conseguissem ouvir os meus gritos. Não havia, porém, comparação possível entre a minha situação e a do visitante. Lá em cima há muito ruído. O vento, os pássaros, as cigarras, até os carros ao longe. As pessoas falam entre si. Mesmo a centenas de metros, numa atmosfera propícia, é possível ouvir um sussurro. Mas aqui debaixo tudo é abafado; o som não se propaga. O silêncio é tão completo que oiço o pulsar vagaroso do meu próprio coração. Oiço os passos novamente – afastam-se rapidamente. Será que vai chamar alguém?
Não. Não vale a pena alimentar esperanças infundadas. Interrogo-me sobre quem seria. Há muito tempo que não tenho amigos. A família morreu. Talvez esteja até melhor aqui debaixo. Dispensava apenas esta angústia de morte. Não há nada mais tenebroso do que a eminência da morte.
Esperem. Oiço-os escavar.
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