Ontem à noite

Acordo com a boca seca, agoniado, com a cabeça a latejar. Sinto cada um dos odores em meu redor de forma amplificada. Causam-me vómitos. A luz fere-me os olhos. Toda a realidade me ofende os sentidos. Só agora percebo: os limites do meu corpo são linhas trémulas, em permanente oscilação, e todo o universo está à beira de me quebrar; e eu resisto. Só o amor, só pelo teu amor me deixaria quebrar; e foi só esse que me faltou.

Tenho sono. Levanto-me. Tenho de beber água. Tenho tanta sede. Pego num copo, mas pouso-o de imediato. O meu estômago lateja. O pulso está acelerado.

Um veneno. Corpo e mente em suspenso. Se pelo menos conseguisse dormir.

Peguei novamente num copo de água e desta vez bebi-o de um trago. Senti-o descer pelo esófago como um torpedo e fui direto à casa de banho para vomitar. Senti-me profundamente aliviado. Purificado, até. Limpo até ao tutano. A minha mente ficou rápida e tudo me pareceu, por breves momentos, evidente.

Só pelo teu amor me deixaria quebrar. Só por ti e em ti, a minha pele cederia, tornar-se-ia líquida. A minha mente encosta-se às tuas palavras, aos teus silêncios, à cor da tua pele. O halo do teu sorriso acompanha-me. Até de olhos fechados, na sombra laranja das minhas pálpebras, ele flutua. O soluço do teu riso ecoa no intervalo dos meus dedos e quase me enlouquece. Quero estar perto de ti. Não aguento mais. Chega de palavras. Envenenam tudo. Se continuar, vou morrer aqui mesmo. Até já. Quero olhar para ti.

Estou mal. Pior do que pensava. Não consigo levantar-me.

Tenho um sorriso estúpido nos lábios. Não me parece possível que te tenha conhecido apenas ontem. Falámos tanto.

Não sei como te encontrar. Será possível? Quem és tu?

Sóbrio. A noite de ontem parece-me um pesadelo. Como fui capaz de não a beijar? Idiota. Ponho os óculos escuros e saio de casa. Fim da tarde. A sua pele morena não me sai da cabeça. Parece pouco. A pele de uma mulher. Que desgraça. Desconhecem o amor. Desconhecem os seus interstícios. A soma das suas ninharias.

Volto a casa. Doí-me a cabeça. Procuro um cigarro.

Sorrio. Tenho um número de telefone escrito no maço de tabaco.

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