O cerco

Escrevo-vos como um homem derrotado.

O cerco à nossa amada cidade dura há mais de 10 anos. Vieram do Norte, atravessando o deserto; bárbaros esfomeados, enviados por um enigmático imperador, cuja ambição não é possível de compreender. Eram milhares. A sua caravana estendia-se ao longo de muitos quilómetros. Alcantilamo-nos no topo das nossas muralhas, pois o confronto direto era impossível.

Nos primeiros anos, visitava todos dias as muralhas, vigiando os movimentos do inimigo, enquanto os meus homens entoavam os nossos hinos de guerra. Os bárbaros construíram máquinas de guerra, desbastando os nossos parcos bosques, e tentaram tomar as muralhas da cidade. Travaram-se sangrentas batalhas. Mas logradas que foram essas primeiras tentativas, pareciam resignados a esperar. Nada mais faziam. Esperavam apenas, infinitamente, em cerco.

Embora nos tivessem privado do acesso aos campos de cultivo, audazes comerciantes conseguiam, a custo, abastecer a cidade através do grande lago. Havia fome e muitas restrições, mas sobrevivíamos. Inexplicavelmente, ou talvez não, os bárbaros não se interessavam por dominar este espaço e estrangular-nos.

Lentamente, percebo-o agora, a minha atenção desvaneceu. Desinteressei-me da sua apática agressão – e culpo-me por isso. Não podia suportar a visão das nossas belas planícies, que as minhas botas não podiam pisar. Por isso, deixei as muralhas e recolhi-me no palácio. As suas salas forradas com tapetes eram um esquecimento. Li e rezei.

Até que um dia, ao fim tarde, subi à torre do palácio, que se ergue acima de todas as muralhas, e ouvi, vindo de longe, trazido pelo vento, um langoroso cântico. Esse cântico era estranhamente familiar. O acampamento em volta da cidade havia crescido extraordinariamente; estendia-se até onde a minha vista conseguia alcançar, perdendo-se na neblina.

Intrigado, pedi que enviassem durante a noite um espião ao exterior. Este foi o seu relatório:

«Saí a coberto da noite e rapidamente me infiltrei por entre as linhas inimigas. A primeira coisa que constatei foi que o meu disfarce era inapropriado. O inimigo veste-se agora como o nosso povo – está perfeitamente adaptado ao nosso clima. Mantive-me na sombra, observando o que podia. Para minha surpresa, era dia de festa no acampamento – tal como na cidade. O inimigo entoava as nossas canções e as crianças pequenas (que pulavam por todo o lado) falam a nossa língua. A sua pele, originalmente branca, é agora escura como a nossa – a contínua espera debaixo do nosso sol, modificou-os. Espreitei um monte lixo e os restos de comida cheiravam às nossas especiarias.



Quando regressava à cidade, sob a pálida luz da lua, vi um movimento e escondi-me observando. Jovens mulheres saíam do acampamento e da cidade e confraternizam no escuro com as sentinelas, tomando o feno florido como leito.»

Foi com perplexidade que recebi este relatório. Compreendi com horror o que significava. Nada nos separava, nada nos distinguia. Haviam-nos vencido. Depois de tantos anos de resistência, haviam-nos vencido. Depois de tanto sangue e tanta fome, haviam-nos vencido.

No dia seguinte, um outro espião chegou de barco. Vinha do Norte. Trouxe a notícia de que o grande imperador bárbaro se dirigia para sul.

Ordenei que todas as armas fossem depostas e que se abrissem todas as portas da cidade.

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