Sede

Avisaram-nos.

Aconteciam coisas estranhas naquela casa. Em noites de verão, em que o calor era demasiado para dormir, ouviam-se ruídos. Às vezes alguém batia à porta, mas quando a abríamos não estava ninguém. Lá fora, iluminadas pela luz do candeeiro do alpendre, ervas crescidas à altura do joelho eram agitadas pela brisa noturna; nada mais. Mais à frente, a uns dez metros, as árvores erguiam-se negras e impassíveis. Fechávamos a porta e voltamos para os nossos quartos com um peso no coração. Algo se agitava lá fora.

Depois chegava a manhã e a casa de madeira, desbotada pelo sol, era toda feita de silêncio. Quieta, abafava todos os nossos movimentos, todas as nossas palavras. O alpendre era fresco, mas melancólico. O cheiro do mar era constante e opressivo. Acho que pensávamos, a todo o momento, sobre o que se passava durante a noite, mas não conseguíamos falar sobre isso. 

Não morava vivalma no raio de muitos quilómetros. De um lado, as falésias de onde soprava uma brisa fresca e constante; do outro, o bosque. Eu, a minha mulher, e as minhas duas filhas eramos os únicos habitantes da casa, mas pressentíamos por todo o lado uma outra presença que não se revelava. Por vezes, quando acordávamos, algumas coisas estavam ligeiramente fora do sítio: os copos ou os talheres remexidos; as portas entreabertas agora num ângulo diferente; a toalha das mãos puxada um pouco mais para baixo de um dos lados; a torradeira quente, apesar de não ter ainda sido utilizada naquela manhã.

Haviam-nos prevenido acerca de tudo isto. Mas ainda assim teimámos em vir. Disseram-nos que alguém iria bater à porta durante a noite e que em caso algum a deveríamos abrir. Mas nós abríamos. Não poderíamos proceder de outra forma. Porque haveríamos de supor algo terrível?

Uma noite, depois de ouvir as tímidas pancadas e antes que eu próprio me levantasse, alguém abriu a porta. Eu a minha mulher ouvimos o seu lento ranger e levantámo-nos com o coração acelerado. Júlia, a minha filha mais nova, estava em frente da porta aberta. A luz da lua iluminava o alpendre e a porta da entrada.

Lá fora estava alguém. Uma criança pequena. Teria talvez quatro anos. Estava descalço e vestia umas calças castanhas enroladas acima dos tornozelos e uns suspensórios azuis sobre uma camisa de interior suja. Tinha olhos claros e o cabelo castanho, quase loiro, muito liso.  Na mão trazia um copo poeirento.

– Água, por favor – disse em voz baixa, estendendo o copo na direção da minha filha.

Esta aceitou-o e perante o nosso olhar incrédulo dirigiu-se ao lava-loiça da cozinha, que ficava ali próximo da porta, e encheu o copo. Vendo que a água estava turva, passou novamente o copo por água corrente e voltou a enchê-lo. Enquanto isto, a criança aguardava quieta, sem que parecesse dar-se conta da nossa presença. 

Fui incapaz de lhe dirigir a palavra, assim como os restantes.

Aceitou o copo das mãos da minha filha e sem o beber virou costas e começou a descer cuidadosamente as escadas do alpendre. Parou por um momento, a pouco mais de um metro de distância, e produziu um grito arrepiante, que a todos estarreceu. Um grito que lhe não era próprio – que parecia de mulher – mas que saíra do seu peito. Depois caminhou calmamente pelo caminho que penetrava no bosque, desaparecendo. Em nenhum momento parou ou olhou para trás.


Durante os dias seguintes, este ritual repetiu-se. Desenrolava-se sempre da mesma forma, até ao mais ínfimo pormenor, e como se fosse a primeira vez que ocorria. E nós, em nada ousávamos perturbá-lo. Pressentíamos que estávamos à beira do horror e que para lá do medo conhecido estava algo impossível de suportar. Mas, e ao mesmo tempo, a estrita repetição daquele protocolo, que se assemelhava a um pesadelo, em que tudo acontecia sem que conseguíssemos controlar completamente os nossos movimentos, era cada vez mais aterrorizadora. A antecipação de cada um dos gestos, de cada um dos sons, e de cada um dos objetos, era terrível, pois a qualquer momento a repetição ameaçava derrocar. E para lá da repetição estava o horror. As tímidas pancadas na porta, que nos surpreendiam sempre no nosso sono, sem que o conseguíssemos evitar. O copo sempre sujo, duas vezes cheio. O reflexo da lua nas fivelas dos seus suspensórios azuis. O grito aterrador, impróprio, mas que ainda assim, por um momento, temíamos não acontecer. O som dos seus passos, afastando-se, como se pisasse papel amarrotado, até desaparecer entre as árvores negras. 


À quinta noite ninguém bateu à porta. Dormimos. 
De manhã, Júlia não estava. 

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