Vou amar-te tanto que
– Não é verdade que as mulheres se apaixonam por quem as faz rir?
– Calculo que sim. Nunca me apaixonei.
– Não é possível.
– Claro que é possível. Porque não?
– Ora… és lindíssima, como é que ainda ninguém se apaixonou por ti?
– Não foi isso que eu disse.
– Ah. Boa. Despedaças corações, é isso? Sorte a minha.
– Bom, se é assim que queres ver as coisas. Preciso mais do que falinhas mansas.
– Ai é?
– Sim, é.
– De que precisas então?
– Se soubesse dizia-te.
– Gosto de ti.
E começaram a beijar-se.
– Porque é que gostas de mim?
– Gosto do teu cabelo esquisito… e do teu mau feitio. E gosto de falar contigo. Acho que era capaz de falar contigo toda a noite.
– Mas eu não tenho toda a noite para falar contigo.
– Nesse caso não falamos.
– Sai.
Ela empurra-o e começa a andar rua fora sob a luz amarelada dos candeeiros. Apertou o casaco de cabedal de encontro ao corpo. Estava uma noite fria. O ar feria-lhe a face, que ruborescia, e secava-lhe os lábios finos.
– Maggie... Vem cá.
Levantou a mão em sinal de adeus.
– Até amanhã.
Quando chegou a casa pôs um banho quente a correr e enfiou-se na banheira. O seu corpo magro dissolveu-se na água quente até à completa insensibilidade. Com esforço estendeu a mão e alcançou a garrafa de vodka. Engoliu um trago que lhe queimou as entranhas. Se pudesse também dissolver-lhe o cérebro – pensou – isso seria o ideal. Transformar-se numa ameba. Devia ser confortável.
Soprou o cabelo que se colava à testa. A água começava a ficar fria. Como gostaria de adormecer. Levantou-se a contragosto. Embrulhou-se no roupão e ainda a pingar saiu da casa de banho. Apesar do frio, abriu uma janela e acendeu um cigarro. Uma nuvem de fumo enrolou-se em torno do seu cabelo. Pensou por momentos em Filipe.
– Filho da puta. Querem todos saltar-me para cima. Vazar os tomates e contar aos amigos.
Marta, a amiga com quem dividia a casa, olhava-a incrédula.
– E tu queres matar-nos? A pneumonia não é assim tão eficaz. Fecha a janela e senta-te aqui.
– Estás sempre preocupada com a merda do fumo…
– O que é que se passa Magda?
– Não sei…
– Já percebi que preferiste a minha excelente companhia, em mais um glorioso serão de televisão. O que é que o macho fez desta vez. Não lhe dás hipóteses de dizerem a coisa certa, pois não?
– Deus, que deprimente. O que é que estás a ver?
– Dividimos um chocolate?
– Não.
– Quem me dera conseguir ajudar-te…
– Dá-me um abraço. Queria tanto escrever uma boa canção.
– És completamente doida, sabes. Dificultas demasiado as coisas. Não deixas ninguém chegar perto de ti. As coisas boas… há coisas que só vêm com o abandono. Estás presa dentro de ti própria.
– Marta poupa-me a essas psico-tretas.
– Estava só a treinar…
No dia seguinte voltaram a encontrar-se logo pela manhã, junto à máquina de café. Magda desviou o olhar. Disse-lhe bom dia. Escapulia-se de olhos pregados no chão, quando Filipe estendeu o braço na sua direção.
– Para… aqui não.
– Como é que te posso fazer rir? – e fez um sorriso largo, de olhos tristes.
– Cócegas.
– Não me tinha lembrado disso. Parece-me boa ideia.
– Sabes que és demasiado bonzinho para que as mulheres gostem de ti.
– Só gostas de bad boys. É isso?
– Não estava a falar de mim. Não faças perguntas sobre mim. Só te prejudicas – respondeu a sorrir.
– Meu deus, como és difícil. Vou acabar por me apaixonar…
– Não queiras ser infeliz.
À noite encontraram-se novamente no ensaio da banda.
– Estou farta!
– Que é? – replicou o Guilherme irritado.
– Só tocamos merda! E parece que mais ninguém se preocupa com isso. Um fora de ritmo, outro desafinado.
Filipe baixou a cabeça atrás da bateria e pensou: “lá vamos nós outra vez…”
– Estás chateado contigo própria Maggie. Não queres ver isso, mas estás. Por mim chega.
Magda pegou no casaco e saiu porta fora. Filipe pensou se devia ou não ir atrás dela.
– Que se foda – disse entredentes. – Pessoal, não stressem, eu falo com ela.
– Vê lá se lhe saltas para cima e acabas com assunto. Já ninguém aguenta.
– Gui... Não sejas…
– A sério. Ó guloso tens erva?
Filipe saiu a correr e apanhou-a junto à estação de comboios.
– Dou-te boleia.
– Não quero. Preciso de estar sozinha.
– Vou contigo então.
– Preciso de estar sozinha.
– Sento-me no banco ao lado. É só para ficar descansado.
Ignorou-o e ele ficou. O comboio chegou quase vazio e Filipe sentou-se duas filas atrás dela. E ali ficou olhando-a. Como gostava do seu cabelo e do seu cheiro.
Por fim virou-se e viu-lhe a cara de parvo, embasbacado. Chamou-o com um olhar e ele aproveitou.
– Desculpa.
– Deixas-me sem palavras Maggie. Nunca te tinha ouvido pedir desculpa por nada.
– Só prova que não me conheces.
– Mas quero conhecer.
– É isso que me preocupa.
Magda levantou-se. Tinham chegado ao destino. Filipe caminhou atrás dela, pensativo.
– Estou quase a desistir.
– És pouco persistente.
– Ah! – grunhiu desesperado, mordendo a manga do casaco. Magda sorriu e parou.
– Dá-me um beijo e desaparece.
– Nunca conheci ninguém como tu. Não te vou dar um beijo. Até amanhã.
Marta estava concentrada numa tigela de massa à bolonhesa.
– Acreditas que não me quis beijar?
– Hã?
– Não me quis beijar.
– Vais acabar sozinha. A limpar cocó de gato.
– Estúpida.
– Eu?
– Não gosto de gatos.
– A massa está ótima. Aproveita.
– Não tenho fome.
– Nunca tens fome.
– Pareces a minha mãe.
– És tão antipática que nem a tua mãe te liga.
– …
– Porque é que não ligas ao Filipe? Fala com ele. Até me doí ver-te assim. Se tivesse alguém como o Filipe caidinho por mim nem pensava duas vezes.
– Nunca foste muito seletiva.
– Não me ofendes.
Riram as duas. Marta tinha um sorriso aberto, mas Magda quando ria fazia-o quase com vergonha, como se estivesse a fazer algo de errado, de impróprio.
Foi para o quarto e ligou-lhe.
– Filipe?
– Sim.
– Onde estás?
– Estava à espera que me telefonasses. Estou aqui em baixo… à porta. – Magda sorriu tapando os olhos de vergonha.
– Vou descer.
Ficaram os dois calados, sem saber o que dizer.
– Vamos beber um copo – disse Filipe.
Ela assentiu.
– O que queres de mim, Magda?
– Não sei.
– Fala. Não sei, não é uma resposta.
– E o que queres tu de mim? Sou tóxica. Fazias melhor em afastar-te de mim.
– Quero ser feliz contigo. Quero fazer-te feliz. É tudo o que eu quero.
– Há pessoas que nascem para serem infelizes.
– Magda acorda. A felicidade é uma escolha. Não escolhas ser infeliz, abandona-te.
– Também tu?
– Se mais alguém te disse isto, deve ser porque está à vista de todos. Para ser feliz é preciso duas coisas: não pensar demasiado e abrir o coração aos outros.
– Bolas. Que discurso de merda ó Filipe. “Escolhe ser feliz!”. Não sabes o que dizes.
– E preocupas-te demais… De que serve irritares-te com o pessoal por causa de uma música. Estamos a divertir-nos.
– O problema é que para vocês é tudo uma brincadeira. É tudo um jogo. Para mim não. Sabes o que gostava? Gostava de escrever uma música boa. Mesmo boa. Que tocasse o coração de toda a gente, que lhes acrescentasse algo. Depois podia morrer.
– Mas porquê essa exigência contigo própria? Quem é que te pôs essa cruz às costas!? Não estamos aqui para salvar o mundo. Estamos de passagem. É bom que aproveites.
– Martim! Bota mais um – pediu Magda.
O barman serviu-lhe mais um copo de vodka que ela bebeu de um só trago.
– O meu pai dizia-me exatamente isto: és como eu, nunca serás feliz. E tinha razão. E é melhor que te afastes de mim. Talvez não queiras acordar um dia de manhã, como eu e a minha mãe, e descobrir que a pessoa que querias ver feliz, o teu mais que tudo, está enforcado, pendurado na porta da casa de banho. Não quis viver mais, nem comigo, nem com ninguém. Não conseguia suportar. O ar era demasiado abafado, as pessoas demasiado estúpidas e felizes – disse tudo isto muito rápido, olhando-o impiedosamente nos olhos.
Filipe engoliu em seco.
– Isso não vai acontecer. Vou amar-te tanto que…
– Não tem nada ver com o teu amor, Filipe. Isso é completamente indiferente!
Separaram-se. Magda deixou a banda. Passava as noites sozinha, fechada no quarto. Nem mesmo Marta conseguia falar com ela.
Um dia, pela manhã, Marta encontrou-a morta; parecia dormir profundamente, tranquila. O vento lá fora assobiava e os pássaros volteavam atirados ao acaso. Na mesa-de-cabeceira estava um poema dedicado a Filipe.
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