O funeral
Estavam todos profundamente consternados. Como todos os defuntos, Gonçalo tinha sido tão boa pessoa. E como sempre, acontecera tudo tão rápida e inesperadamente. A família estava inconsolável. As mulheres tinham a cara manchada de vermelho. Os homens tinham a boca torcida, como se tivessem sofrido uma trombose. As crianças, seus filhos, recusavam-se a falar – deus não podia existir.
Como é hábito nestas ocasiões, toda a gente aparecia. Amigos, vizinhos e familiares pouco presentes saiam das suas rotinas e compareciam para apresentar os pêsames.
Dona Emília, uma vizinha, pensou no que faria para o jantar – talvez polvo no forno – parecia-lhe adequado que não comessem carne. O jovem Firmino pensou na filha do capitão – deus era tão bondoso para com os homens.
Algumas pessoas estavam dentro da casa mortuária, enquanto outras preferiam ficar cá fora a conversar, onde o ar era mais respirável e o céu azul e aberto. Entravam apenas por momentos para cumprimentar a família mais próxima e saiam com um profundo horror à morte. Outros nem se atreviam a entrar; esperavam que alguém saísse para que lhes falassem. Conversavam de forma pausada, com sorrisos, não risos, por respeito. Lá dentro, no escuro, segredava-se constantemente – a viúva sentia a cabeça a rebentar.
Pelo menos não sofreu – ouvia-se de vez em quando. O pior são as crianças, coitadas.
Haveria uma missa e depois os agentes funerários tomariam o caixão em peso e colocá-lo-iam no carro. Talvez alguns dos amigos se oferecessem para ajudar nesta tarefa. Havia bastantes flores. O ar cheirava bem.
Apesar da falta de apetite que estas situações provocam, o café mais próximo tinha geralmente muita afluência nos dias de funeral. Recusando-se a comer durante muito tempo, algumas pessoas eram acompanhadas pelo braço por receio que desfalecessem, para que tomassem um sumo e qualquer outra coisa. Aí falava-se mais livremente, pois estavam presentes outras pessoas que em nada estavam relacionados com o defunto.
Finalmente o cortejo saiu. Os agentes funerários pareciam, como sempre, apenas fazer o seu trabalho, o que causava sempre alguma estranheza. Faziam o seu trabalho como quem amassa um pão, estende a roupa ou ensina a tabuada a crianças – o que geralmente provoca um ligeiro arrepio na espinha.
A maioria das pessoas seguiram no cortejo a pé, enquanto outras preferiram ir de carro. Lentamente, como uma língua negra, a mole humana, encabeçada pelo carro funerário, lambeu as ruas da vila, dirigindo-se ao cemitério.
Em todos os funerais há alguém que conta histórias ou mesmo anedotas. Neste caso, era Luciano quem o fazia. Caminhava quase no fim do cortejo, colocando os pés fora da estrada, quase na valeta, enquanto falava com uma animação contida com o seu companheiro de circunstância, que parecia quase incomodado pela falta de decoro. Naquela ocasião, falaria com qualquer pessoa, mesmo que não a conhecesse – tinha pavor da morte, não podia pensar por um momento, que um dia seria ele quem tomaria o lugar do morto, baloiçando desamparado no escuro do caixão. Por isso falava. Tentava com disfarçado desespero alegrar os outros à sua volta.
Leonor, a filha do capitão, apareceu apenas no cemitério. Estava acompanhada pelo pai. Firmino olhou-a profundamente. Estava demasiado sério quando os seus olhares se cruzaram. Ela vestia de negro e sua pele parecia tão branca e macia que lhe dava arrepios.
De longe, os colegas de trabalho de Gonçalo tinham formado um pequeno grupo. Cristina, de óculos escuros, parecia particularmente abalada.
O padre disse algumas palavras e os homens desceram o caixão no buraco que o coveiro orgulhosamente abrira. É sempre um momento emocionante. Os homens precisam de fazer alguma força, agarrando as cordas com firmeza, para que o caixão não tombe desamparado, e desça lentamente até ao âmago da terra, até à mais profunda das sombras. Depois o coveiro começa o seu labor, lançando a terra, que cai sonoramente em cima do caixão; o som da terra a cair torna-se gradualmente mais abafado. Algumas pessoas pegam num torrão de terra e atiram-no para a cova. A fenda que se abrira na terra fora fecundada; e agora, como uma vagina, a terra contraía-se em espasmos de amor.
É nesse preciso momento de tensão, que acontece algo de inesperado. A viúva desembaraça-se dos restantes familiares que a consolavam e, com um grito de desespero, salta num mergulho perfeito para dentro da cova. Gritava e esperneava, batendo furiosamente no caixão. Entre a multidão gerou-se uma forte comoção e vários homens, entre os quais o vigilante capitão, foram em socorro da pobre senhora, retirando-a não sem grande embaraço do fundo da cova.
Quando finalmente a conseguiram retirar, o seu vestido preto estava cheio de terra, a sua cara lacerada e suja, e o cabelo solto e desgrenhado. Perdera os sapatos e quase não se sustinha nas pernas, pelo que eram precisos dois homens para a levar. Ainda assim, quando passou junto a Cristina, cuspiu-lhe na cara, o que deixou todos estupefactos. Olharam-se, por momentos, olhos nos olhos e não disseram palavra. E logo depois foram separadas por dois grupos que se formaram em torno de ambas.
No meio daquela confusão Firmino cruzou o olhar com a filha do capitão, que estava agora sozinha. Correu para ela e agarrando-lhe a mão puxou-a na direção da saída. Ela seguiu-o sem resistir. Correram ao longo do muro do cemitério rindo até chegarem à esquina. Fora de vista de todos, Firmino encostou-a ao muro do cemitério e beijou-a. A sombra longilínea dos ciprestes cortava os seus corpos ofegantes. Quase que se mordiam e rasgavam.
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