Madalena
Os rapazes viram-no ao longe. Vinha de bicicleta pela estrada de terra batida que passava junto ao reservatório da água.
– Olha quem aí vem!
– Para onde é que ele vai?
– Para casa da puta. De certeza.
Na sua bicicleta, Miguel era o único sob o sol escaldante. Olhava o horizonte, na direção do mar, como que adormecido, de olhos semicerrados. Ao longe ouvia a rebentação das ondas e as vozes dos rapazes, que se confundiam com o mar sem fim. O sol fazia a atmosfera vibrar como uma corda. Embalado pelo guinchar da velha bicicleta, Miguel contornava laboriosamente os buracos da estrada. Trazia no cesto da frente duas garrafas que tilintavam a cada ressalto. Atrás, trazia uma caixa de cartão, cuidadosamente atada ao suporte da bicicleta.
Os rapazes saíram ao seu encontro como numa emboscada e rapidamente o rodearam, obrigando-o a parar.
– Onde é que vais com tanta pressa, ó escritor!? – chamavam-no assim porque estava sempre a escrevinhar em pequenas folhas de papel que acumulava nos bolsos.
– E o que é que trazes aí? – perguntou outro, logo de rajada.
– Saiam da frente. Deixem-me passar – disse de modo firme, apesar de a sua boca não aparentar qualquer movimento por detrás da espessa barba, negra e enrolada, tal como o cabelo, demasiado comprido e sujo.
– Champanhe!? Estás maluco, ó escritor! Onde é que vais com isto? – disse Carlos, o mais velho e líder do bando.
Miguel tentava em vão livrar-se deles e colocar-se em andamento, mas sem sucesso. Eram pelo menos 10 miúdos. Vestiam calções curtos e camisolas de alças largas, mostrando os seus ombros morenos.
– Estejam quietos! Tirem as mãos daí!
Empurrou-os violentamente. Normalmente, teria deixado aqueles rapazes levarem a sua avante. Era normal baterem-lhe e roubarem-no.
Apesar da sua aparência franzina, Miguel era forte e derrubou dois deles com um empurrão. Os outros, assustados ou surpreendidos, recuaram por momentos e Miguel lançou-se na bicicleta rampa abaixo.
Madalena vivia numa casa isolada no fim da vila, junto à praia. Era aí que recebia os seus clientes. Vendia atenções e amor. Miguel nunca fora seu cliente, mas passava todos dias por sua casa. Parava e conversava. Madalena achava-o amoroso, embora na presença de outros não se coibisse de o enxotar.
– Bom dia, Madalena!... como estás?
– Olá, Miguel… – falava através da janela da cozinha enquanto segurava uma caneca de café escuro.
Maior parte das vezes não dizia mais nada. Cumprimentava-a e ficava a olhar para ela.
– Se é para ficar aí olhar, vou cobrar bilhete!
Se Miguel não aparecesse uma manhã, Madalena teria sentido amor. Talvez achasse que era apenas uma pequena indisposição, mas teria sido amor. De qualquer forma, Miguel aparecia todos os dias e tal nunca aconteceu.
Sentia-se secretamente atraída pelos seus olhos claros, umas vezes tímidos, outras vezes intensos. Mas isso não era amor. Amor é quando é se torna insuportável estarmos longe de alguém. Chega a doer. Mas só nos faz falta aquilo que não temos e, portanto, a permanente disponibilidade inibe o amor.
Miguel vivia na rua. Fazia-o já há algum tempo, desde que se separara da mulher. Ali na praia, ninguém conhecia o seu passado. Aparecera vindo do nada e ali ficara.
Não fazia mal a ninguém e aceitava os maus tratos sem animosidade, pelo que o toleravam. Viam-no frequentemente a escrevinhar em pequenos papéis, em velhas agendas ou cadernos antigos que encontrava no lixo. Quando lhe roubavam os papéis – como fazia Carlos – parecia por momentos incomodado, mas logo se desligava deles, afastando-se. Aprendera a custo que só assim podia salvar o que amava. Mais tarde, voltava e apanhava o que restava.
Carlos levantou-se enfurecido e sacudiu rapidamente o pó dos seus calções vermelhos. Pegou na maior pedra que conseguiu alcançar e atirou-a com toda a violência na direção de Miguel, que fugia rampa a baixo.
Era o líder do grupo e nada nem ninguém o poderia colocar em causa. Como qualquer ditador, criara demasiados inimigos, pelo que o poder era uma necessidade. A violência com que o exercia não lhe deixava qualquer remorso. A sua vontade prevalecia sobre todos. Fosse alguém capaz de lhe dar um beijo de amor, tivesse sua mãe tempo para lhe dar mais carinho, não tivesse o pai morrido antes de ele sequer nascer e talvez Carlos não fosse assim. Talvez a ternura de um filho o faça ainda quebrar. Ou talvez haja pessoas assim, que nascem assim, e são assim, inquebráveis; tão duras que quase que parecem más.
A pedra rasgou o ar, zunindo, e acertou em cheio no crânio de Miguel.
– Ah!
Madalena observara toda a cena a partir da varanda de sua casa.
Recordava-se de uma noite, no fim de setembro, quando o ar noturno era já mais fresco, menos langoroso. Vestia um casaco de malha e aninhara-se no banco de baloiço da varanda, quase a dormitar sob o hipnótico rumorejar das ondas. Sentia-se triste, vazia. Miguel chegara silenciosamente e sentara-se numa pedra do caminho olhando para ela.
– Chega cá – disse Madalena.
Miguel levantou-se e aproximou-se.
– Diz-me porque me sinto triste.
Um tanto agitado, Miguel cofiou a barba e retirou do bolso do casaco o habitual molho informe de papéis. Fungou, enquanto os percorria com os dedos, e estendeu-lhe um deles.
Pegou nele, curiosa, e leu-o rapidamente.
– Porque me dizes disparates?
Miguel falou pela primeira vez desde que ali chegara: – Digo-te apenas a verdade.
– Que verdade… a verdade é que somos todos defeituosos. Eu, tu e todos os outros. Somos monstros disfarçados. Fazemos coisas monstruosas e o mundo é um lugar mau.
– O que fazes não é monstruoso.
Madalena levantou-se lentamente e deu-lhe um beijo. Ficaram quietos, com os lábios muito próximos, mas não se tocando. Respiravam um do outro. Ela limpa e fresca e ele sujo. Abraçou-o.
– Vai-te embora.
Pouco tempo depois chegou um cliente – Carlos.
Miguel estava caído no chão. Carlos aproximou-se com toda a calma. Viu que Miguel ainda respirava. Pegou numa das garrafas de champanhe e abriu-a com todo o vagar. A rolha disparou, sonante, contra o fundo azul cristalino do céu e o champanhe jorrou por momentos sobre a areia quente, fervilhando. Carlos bebeu um gole e sentiu o doce do champanhe fresco escorrer pelo canto da boca, manchando-lhe o pescoço e o peito. Limpou-o com as mãos sujas e sentiu-se imundo. Isso incomodou-o e passou a garrafa aos colegas numa tentativa de se livrar dessa sensação.
Madalena corria caminho a baixo.
– Parem!
Desafiado por aquela ordem inusitada, Carlos pegou na segunda garrafa de champanhe.
– A puta e o escritor! Que par! Também me vens dar ordens!? Ou salvar o teu amor?
Os outros riram como um bando de hienas.
– Não tens salvação puta!
Miguel levantou por momentos a cara da areia. O sangue escorria-lhe da nuca e misturava-se com a saliva e a areia. Murmurou qualquer coisa.
Irritado pelo desespero que via na cara de Madalena, Carlos brandiu violentamente a garrafa de champanhe como um martelo, esmagando o crânio de Miguel.
Todos engoliram em seco.
Madalena caiu de joelhos no meio do caminho.
Nessa manhã Miguel levantara-se cedo, como de costume, pois o seu catre era por demais desconfortável. Mas nessa noite quase não descansara, pensando naquilo que tinha para fazer no dia seguinte. Madalena fazia anos. Queria fazer-lhe uma surpresa. Por isso reunira todo o seu dinheiro. Amava-a tanto que quase tinha medo de lhe falar. Deixaria a sua surpresa à porta, sem que ninguém o visse. Ela ficaria feliz. Queria vê-la feliz.
Talvez fosse amor, aquele seu mal de alma; talvez fosse uma outra coisa qualquer. Que importa.
Carlos abriu a caixa de cartão. Tinha um bolo de aniversário, coberto de chantilly e morangos, agora completamente esmagado pela queda.
Foi ao encontro de Madalena e ofereceu-lho largando-o a seus pés.
– Tem vaga para mais um cliente?
Madalena não chorava.
– Ambos sabemos que não és um monstro, Carlos. Porque fizeste isto?
– Os monstros existem, Madalena. Um pouco de bolo? – apanhou um morango coberto de chantilly e colocou-o cuidadosamente na boca para não sujar os lábios. – Somos o melhor e o pior do mundo, simultaneamente. O que dizia no papel que ele te entregou?
– Que papel? – Madalena guardava-o religiosamente junto de si, no bolso do vestido. Começou a soluçar. Percebeu que Carlos não a iria perdoar e que nenhuma clemência poderia ser invocada.
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