TRILOGIA DE NOVA IORQUE, PAUL AUSTER (Tradução de Alberto Gomes)
Não sei se é um romance ontológico (alguns dirão pós-modernista) mascarado de história de detetives, ou o contrário. É uma combinação que resulta – Javier Marías também a usa com grande proficiência. O mecanismo narrativo do romance policial é básico, mas poderoso – funciona como um motor.
Nestas três histórias interligadas o tema predominante é a identidade. Em ‘Cidade de vidro’, a primeira novela, um pacato escritor de romances policiais, Daniel Quinn, recebe uma chamada para o detetive Paul Auster. Num primeiro momento, indica que é engano, mas depois assume a sua identidade, que se confunde também com a do herói das suas histórias – um jogo de duplos em que Quinn reconquista uma identidade perdida, ou apropria-se dela. O seu trabalho é seguir Stillman (o pai) que chega a Nova Iorque de comboio. Não o conhece – tem apenas uma fotografia antiga. Na estação, dois homens semelhantes param à saída e partem em direções opostas. Não tem a certeza de qual é o verdadeiro Stillman, mas segue um deles. Inicia-se a vigilância, tema que é obsessivamente explorado segunda novela (Fantasmas). Nela, um indivíduo (White) contrata um detetive (Blue) para o vigiar alguém (Black), também um escritor. Percebe-se, mais tarde, que foi Black quem pediu para ser vigiado, recebendo os relatórios do detetive. A vigilância é feita de forma compulsiva. Blue deixa toda a sua vida, inclusive a noiva, de modo a continuar o seu trabalho. É como se Black só tivesse existência porque é observado – estabelece-se uma simbiose ou jogo de espelhos entre os dois: Blue começa a assemelhar-se a Black ou Black é um reflexo de Blue. Há um sentimento de claustrofobia – quem é o preso e quem é o guarda, não é claro; mas nenhum pode sair. Na terceira novela, ‘O quarto fechado’, temos de novo o tema dos duplos e da identidade. O melhor amigo de infância do narrador, Fanshawe, desaparece e este acaba por tomar o seu lugar: casa com a sua mulher; perfilha o seu filho; publica os seus livros (ambos são escritores). Fanshawe envia-lhe uma carta agradecendo, mas notando que está vivo. A sua existência (a do duplo) põe tudo em causa: o narrador tem de encontrá-lo e matá-lo. São dúbias a intenções de Fanshawe: desaparece para seu proveito ou para dar lugar a Fanshawe, arrependendo-se de seguida?
Em todas estas histórias são exploradas a questões da identidade, duplicidade e vigilância. Também não será ocasional que vários personagens sejam escritores, inclusive o próprio Paul Auster (ora detetive, ora escritor). Parece-me que estas histórias podem ser interpretadas como uma parábola acerca do processo de escrita e da relação do escritor com as suas personagens. Até que ponto um escritor não se sente um espelho multiforme das suas personagens na iminência de diluir a sua própria identidade? Até que ponto não chega a duvidar se são as personagens que se parecem com ele, ou se é ele que se começa a parecer com as personagens? Será ele o detetive encarregado de os perseguir, vigiar, descobrir? Ou, mesmo sendo o detetive, será ele quem está a ser observado e perseguido? Tudo isto é o motor de um sentimento claustrofóbico para o qual a única saída é o fim do caderno vermelho, rasgado folha a folha e atirado para o lixo.
Comentários
Enviar um comentário