EM BAIXO, LEONORA CARRINGTON
Este livro conduziu-me a uma imobilidade fetal. Não se pode dizer que, ficando quieto, tentasse pensar mais intensa e definitivamente sobre o que acabara de ler; de facto, não tentava nada. Não me conseguia mexer enquanto pensava sobre ele, apenas isso. Como contraponto, seguiram-se períodos de agitação psico-motora, em que volta a abrir o livro, andando para trás e para a frente, como um sabujo no rasto de um coelho, cheirando cada frase. Passou por aqui um coelho. Posso cheirá-lo, mas não encontrá-lo.
Leonora Carrington foi uma pintora e escritora associada ao movimento surrealista. O livro é um relato único. Uma viagem a um país estranho, bárbaro e inquietante. Um relato tão lúcido quanto possível do que definiria como um estado alterado de consciência. Uma sensibilidade extrema exposta à barbárie. Inquietou-me menos os relatos, de uma lucidez impressionante, dos episódios passivelmente psicóticos ou paranoicos, do que a clareza da selvajaria que se desenrolava à sua volta. Sylvia Plath em ‘Bell Jar’ faz algo muito parecido: na confessa inadaptação da personagem, em que a mesma se martiriza, coloca em evidência a loucura geral. Por oposição extrema, colocando fragilidade e brutalidade numa mesma sala, podemos por vezes entrever a verdadeira natureza do que nos rodeia e da nossa progressiva insensibilização.
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Segunda-feira, 23 de Agosto de 1943
Faz agora exactamente três anos que fui internada no sanatório do Dr. Morales, em Santander, Espanha, considerada louca incurável pelo Dr. Prado, de Madrid, e pelo cônsul britânico.
Seguíamos normalmente, quando, vinte quilómetros depois de Saint-Martin, o carro parou, com os travões presos. Ouvi Catherine dizer: «Os travões estão presos.» «Presos!» Também eu estava presa em mim mesma, por forças estranhas à minha vontade consciente, que também paralisavam os mecanismos do carro. Este era o primeiro momento da minha identificação com o mundo exterior. Eu era o carro. O carro imobilizava-se por minha causa, porque eu própria estava presa entre Saint-Martin e Espanha. O meu poder horrorizava-me.
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