LILLIAS FRASER, HÉLIA CORREIA
Este livro é um tratado sobre o furor da linguagem. Em todas as frases (e é isto que é notável) habita um furor, uma violência arcaica, uma pulsão animal. Em todas elas há um verbo, um adjetivo, um nome que sublinhamos mentalmente. Todo o livro parece ter sido cosido à mão, num pontilhado que se sustenta durante mais de duzentas páginas, sem quebranto ou saturação. Uma linguagem que nos transporta para um tempo violento, de sangue e escarro. Mas também um tempo de aparente viragem, em que a luz da razão brilha sobre os escombros do grande Terramoto de Lisboa, desenhando novas e renovadas tiranias, sobre um mesmo povo, que precisa de saber do há de ter medo. O terramoto foi um reinício, o equivalente atual de um apagão digital, em que desapareceram usurários e os seus registos, em cada um reclamava de novo as suas propriedades e, se fosse caso disso, se legalizavam amores antes impedidos.
Lillias Fraser, sendo a personagem principal, é apenas o fio condutor na história da sua malquerença e a momentos quase desaparece. Todos a querem afastar, pois reconhecem nos seus olhos a morte que há de vir; e ninguém gosta de conhecer o que é inevitável. Conta-se sobretudo a história das pessoas que a rodeiam, transportam ou a quem o acaso juntou: Lady MacIntosh, Georgina, as Davidson, as Connelly, Soror Theresa, Cilícia, Tomás, Jayme. Conta-se sobretudo o seu medo, pois reconhecendo-lhe poderes sobrenaturais, descendência de bruxa, todos acreditam no mal e poucos no bem. Cilícia, teme-a mais por ter sido testemunha de comportamentos licenciosos, do que por aquilo que os seus olhos poderiam adivinhar. Jayme, que viajou pelo estrangeiro e é um homem da razão, não tem receio dos seus olhos e partilha do seu leito sobre as lajes da cozinha, onde enterraram a anterior inquilina. Por fim, encontra Blimunda (personagem do Memorial do Convento, de José Saramago) – há conversa literárias que duram séculos.
Voltando ao início: o furor da linguagem. Poucos escrevem assim:
“Nos arredores de Inverness, os enforcados, negros e nus, pareciam já tão leves que a mais pequena aragem os movia. O esqueleto que havia dentro deles demoraria vários dias para romper. Os pássaros olhavam-nos de longe, ainda intimidados. Não sabiam em que momento começava a ser seguro pousar naquela carne que os chamava. Apesar do ar gelado, o cheiro entrava na boca das viajantes.”
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