A ORELHA QUE VAN GOGH OFERECEU
Adoramos artistas loucos; quanto mais loucos, incompreendidos, pobres, miseráveis, bêbados, drogados, suicidas, ermitas, exilados, debochados, melhor. Este tipo de coisas destila a arte. Apura a criatividade. Deixem-nos morrer desgraçadamente, que ainda hão de render bom dinheiro e iluminar um bocado esta caserna bafienta.
Mas é impossível viver com eles; isso não, isso é um grande transtorno. Tenho roupa por lavar, o jantar por fazer, a máquina da loiça por arrumar – não me venham com crises existenciais, ponham-se nas putas, vão trabalhar.
Que morram, embebedem-se, mutilem-se, metam a
cabeça no forno, deem um tiro nos cornos, enfrasquem-se em barbitúricos, apodreçam
num hospício miserável.
Mas também, digo-vos já, não queremos cá esse
tipo de artista burguês, que escreve ou pinta com a mesma frequência que corta
as unhas e com propósito identicamente higiénico. Isso é arte pífia,
acolchoada, bem sedimentada e com racionalidade anódina a potes.
Quer dizer, estes são para adorar em vida.
Porque são pessoas como deve ser, que sabem estar numa apresentação, numa vernissage,
a papar belos jantares sem carregar demasiado na vinhaça, só até ao limite
burguês do ligeiro abuso. Os outros é para depois de mortos. Olhamo-los como
quem contempla um desastre de automóvel: tchi, à velocidade que ele vinha, está
todo enfaixado, não se aproveita nada; porra, que isto até me está a dar uma
certa tesão de vê-lo ali todo perfurado, com sangue espalhado pelo tablier, não
devia ter cinto, o cabrão.
Antevéspera de Natal de 1888
Van Gogh corta a orelha com uma navalha
embrulha-a num pano e oferece-a uma criada do
prostibulo de Arles.
Hemingway mata-se com a sua caçadeira favorita pela
manhã.
Sylvia Plath sela cuidadosamente os seus quartos
com toalhas, fita adesiva e roupa, deixa-lhes comida e suicida-se ligando o gás
do forno com a sua cabeça lá dentro.
Virginia Woolf enche os bolsos de pedras e entra no
rio Ouse.
Dostoiévski, constantemente falido, escreve para pagar
o que perde na roleta.
Artaud, internado num hospício, é sujeito a eletrochoques
que lhe quebram as vértebras.
Mishima comete seppuku na varanda do quartel militar depois
de um golpe militar falhado. Morita, o seu companheiro, falha por três vezes a decapitação
que deveria acabar com o sofrimento. Ele que se orgulhava de nunca ter falhado
o prazo de entrega de um manuscrito, rodeado de incompetentes.
Rimbaud salvou-se – abdicou da literatura aos 18 anos e foi vender armas usadas para a Etiópia.
Mas deixa-os
arder, é com as suas cinzas que se escrevem todos os livros de autoajuda.
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