BOA-HORA

 

Rua de Angola com a Rua do Forno do Tijolo
Vendedores ambulantes de gravatas e de cintos


Estendo-me em cima da cama.
As luzes e os sons da cidade
Coam-se por entre os estores
E através das cortinas
Baloiçando ao sabor uma brisa fresca.
Deixo-me ficar de olhos abertos
Em cima dos lençóis
E espero
Pacientemente, espero.
Estou no deserto
De barriga para cima e espero.
Mãos cruzadas sobre o peito
Pernas afastadas, espero
Este vazio é quase perfeito
Embora me preocupe
Pois alguma vez será definitivo.
Nada terei para escrever
E – ironia das ironias –
Escreverei sobre isso mesmo.
 
É claro que nas ruas da cidade
Há muito mais poesia.
As pessoas falam e vestem
Andam e riem.
Se é verão, as mulheres mostram
As pernas e os braços
Os ombros, as omoplatas,
Os tornozelos.
Tudo se agita como num grande caldeirão
De druidas.
O seu caldo borbulhante
Sobrecarrega os sentidos.
Por vezes, é necessário desviar o olhar
Distrair-nos com um cigarro
Fazer de conta que isto não é demais.
A poesia manifesta-se até
Nas atividades mais corriqueiras.
Tome-se por exemplo
A denominação dos estabelecimentos comerciais.
Na rua do Forno do Tijolo
E por aí adiante
Como que sobe dos Anjos para a Graça
Pode observar-se o seguinte alinhamento:
Condição Fascinante Lda, limpezas auto;
Oásis Oportuno Lda, uma loja de vinhos;
Snack-bar Tebas, modesto mas épico;
Restaurante Nova Esperança, quantos não há;
Soap Opera, uma lavandaria.
Por detrás de cada um destes nomes
Há uma história e pessoas
É possível adivinhá-las.
Como por atrás de cada rosto gretado
De cada tornozelo
Mas também nas mãos tisnadas
Que arrebanham
Em dois ou três sacos
Todos os seus pertences
Quando se prenuncia a noite
E o vento sopra fresco
Tão diferente daquele que dissipa
O calor acumulado no meu quarto.
 
Já noutra parte da cidade
Na calçada da Boa Hora
Há uma funerária
Dessa mesma Boa Hora
Senhora a quem recorrem os devotos
Nos momentos de maior aflição
Na morte, mas também no parto.
Como se cada morte fosse também parto
E cada parto uma morte.
 
Como é que podem coexistir todas estas coisas?
Empacotadas no mesmo tempo e no mesmo espaço
Todas elas se reviram
E contorcem por detrás dos olhos.
Volto então ao início:
Deito-me na cama
E fito longamente o tecto
Olho para barriga e para os pés
Oiço tudo com atenção
Quase adormeço, mas alguém grita lá fora
O mundo é belo e terrível
Pouco podemos fazer a esse respeito.

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