O CASACO

Lídia gostava de comprar roupa em segunda mão. Peças vintage com carácter; pouco comuns, como ela gostaria de ser. Conseguia sempre impressionar as amigas: onde será que ela foi desencantar este vestido, esta camisa, aquelas calças? Lídia tinha todo o estilo do mundo. Ainda por cima era bonita, jovem e saudável. Lídia tinha tudo a seu favor. A vaidade era o seu único pecado.

Naquela segunda-feira à tarde, Lídia vasculhava o inventário no primeiro andar de uma pequena loja da especialidade. Tinha a mesada no bolso e a intenção de a delapidar. As janelas rasgadas até ao chão deixavam entrar o sol, tornando visíveis as partículas de pó que se agitavam doiradas no ar. Os seus passos ressoavam pausadamente no soalho de madeira. Queria mesmo arranjar um casaco para a festa do próximo fim de semana.

Enquanto ali estava entrou um homem que se dirigiu ao balcão. Ouvi-o falar baixo com o dono, o senhor Vidal. Não conseguiu perceber o que diziam. O homem trazia no braço esquerdo dois ou três cabides com roupa de senhora. O dono da loja pegou em cada um deles, inspecionou-os e pendurou-os num charriot atrás de si. Entre as várias peças estava um casaco vermelho. Lídia não conseguia tirar os olhos dele. Ofuscava tudo aquele vermelho. Era mesmo aquele o casaco que procurava. Toda a gente ia ficar embasbacada.

Os dois homens discutiam agora o preço e Lídia aproximou-se do balcão passando distraidamente os dedos pelos vestidos em exposição. O homem tinha um olhar simiesco – reparou Lídia: a testa baixa, apesar da linha de cabelo recuada, o nariz achatado e um excesso de pilosidade. Devia ter 50 anos e vestia um fato escuro. Tinha as costas curvadas, quase uma marreca, e o andar trôpego. Não parecia de todo agradado com o preço que lhe propunha o senhor Vidal e passou várias vezes as costas da mão pelo nariz, até que por fim lá aceitou o negócio.

Lídia abeirou-se de imediato do balcão. Não iria deixar aquele casaco escapar-se:

– O vermelho – disse de mansinho para o senhor Vidal. O dono sorriu e virou-lhe as costas para pegar no casaco. Revistou-lhe os bolsos – um tique profissional – e retirou um pequeno bilhete. Alguma coisa não estava bem. A sua face contorceu-se num esgar e chamou de imediato o homem que descia a escada:

– Venha cá! Venha cá! Não posso ficar com este casaco…

– O que se passa senhor Vidal? – perguntou Lídia.

– Agora não, menina. Já falo consigo.

Cochicharam junto à porta. Uma pequena discussão. O senhor Vidal mostrou-lhe o bilhete e de seguida deu-lhe o casaco para as mãos, voltando a colocar o papel no bolso. Nem sequer lhe pediu o dinheiro de volta. 

Lídia reparou que a testa do senhor Vidal estava encrespada. As suas feições, normalmente tão afáveis, mostravam desagrado. Mas o homem descia rapidamente escada com o casaco pendurado no braço, pelo que Lídia se escusou a ouvir a eventual explicação do sucedido e seguiu-o sem mais demoras.

À porta do prédio interpelou-o:

– Espere!

O homem voltou-se e encarou-a sem responder. Lídia continuou:

– Não quer vender esse casaco?

– Era da minha mãe…

– Mas queria vendê-lo, não era? É que eu gosto mesmo desse casaco – Lídia não conseguia disfarçar a excitação.

– A minha mãe, que deus tem...

– Sinto muito. 50 euros? – disse salivando. 

– A menina não percebe…

– 80 euros. É toda a minha mesada. Por favor. É muito mais do que o senhor Vidal lhe deu por todas as outras peças.

O homem franziu a boca angustiado e estendeu a mão para receber o dinheiro. Os seus olhos turvaram-se, mas Lídia não reparou nisso. Tinha apenas olhos para o casaco.

Vestiu-o e sentiu-se resplandecer, como se tivesse superpoderes. Olhou em volta procurando os respetivos olhares de admiração. Apenas o homem a mirava ainda embasbacado. Colocou a mão no bolso, retirou o bilhete e leu a nota:

"Enterrem-me neste casaco"

– Eu não sabia, menina. Não me tome por um bruto. Foi apenas uma desatenção. A minha mãe que me perdoe.

– A vida é feita de detalhes e sua mãe sabia com certeza disso. O que mais me agrada no casaco são estes botões doirados. Qualquer falta de atenção pode ser fatal; e uma vez cometida poderá não ter retorno.

Lídia apertou meticulosamente os botões do casaco, voltou a colocar o bilhete no bolso e atravessou a rua sem olhar. Um camião descia a encosta a toda a velocidade. O homem talvez tenha pensado em avisá-la. O camião apitou e um segundo depois o corpo de Lídia foi projetado pelo ar. 

Perante o estrondo e comoção o senhor Vidal desceu as escadas e acudiu ao local. Viu a menina Lídia estendida na calçada em pose inanimada: como um trapo. Apenas o casaco vermelho de botões doirados parecia intocável. O homem continuava ali mesmo, olhando pasmado, com o peito baloiçar e aquele rosto perfeitamente ignóbil e braços curvos com trejeitos de macaco. Depois abeirou-se mesmo do corpo e tentou furiosamente despir-lhe o casaco e isso, embora compreensível, pareceu ao senhor Vidal perfeitamente obsceno. Ele e outros transeuntes que ali acudiam agarraram e imobilizaram o homem. Que, mais tarde, foi levado para o hospital num estado catatónico.

A família de Lídia, apesar de consternada, cumpriu com a sua última vontade: a jovem foi enterrada no seu casaco vermelho. Como um pouco mais de cuidado teriam percebido que aquela não era a sua caligrafia – mas ninguém presta muita atenção nestas circunstâncias. 

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