BIBLIOTECA


Há malucos por todo o lado, mas é bem verdade que tendem invariavelmente a aproximar-se das bibliotecas. Talvez sejam atraídos por algum zumbido subsónico – certamente o agitar das escamas dos insetos bibliófagos. Ou talvez seja o aroma do papel em decomposição que os atraia – pode, em circunstâncias adequadas, atingir um odor adocicado capaz de induzir uma sensação de conforto e familiaridade. Ou ainda, e penso que esta será a mais acertada das três explicações, talvez seja todo o manancial de conhecimento, canónico ou apócrifo, que ali recrudesce e se acumula, criando uma diferença de potencial, que convida a uma corrente contínua, embora desordenada, de excentricidade. Não se trata aqui de uma atração entre ignorância e conhecimento – bem pelo contrário. Trata-se de uma atração entre ordem e desordem, o que de nenhum modo é sinónimo do anterior binómio. Se o for, será com certeza em sentido inverso, em que à desordem corresponde o conhecimento e à ordem a ignorância. O ponto fundamental, contudo, é que, seja por adoração ou blasfémia, repetição ou digressão, a loucura precisa de ordem. Uma ordem que a sustenha num delicado equilíbrio ou onde se confunda e baralhe por uma ação de desmantelamento. 

Como é que eu sei tudo isto? Pois bem, trabalho numa biblioteca.

Conheço histórias que, se as vísseis escritas num qualquer volume encadernado, as apelidaríeis de fantasiosas ou caricaturais. Embora a realidade seja pouco interessante como literatura e a literatura necessariamente pouco realista. Mas isto, lá está, são as minhas teorias. Tenho teorias para tudo, porém raramente as coloco em prática. Não pensem que faço esta introdução com um qualquer deleite oitocentista, à guisa dos escritores da época, que induziam a credulidade dos seus leitores com um preâmbulo em que contavam como um qualquer velho lobo do mar ou um singular manuscrito, que lhes chegara às mãos por via de um abnegado amigo, os colocara ao corrente da história que se seguia. Nada disso. Aliás, é impossível escrever sem ficcionar – uma outra teoria minha – podeis, portanto, estar certos de que vos vou mentir. Tal não deverá, contudo, reduzir o vosso gozo – antes pelo contrário. 

Por falar em gozo, soube ontem que a sonsa da Dolores, uma púdica de primeira, que se indigna sempre que um adolescente borbulhento pede para requisitar um dos ‘Trópicos’ do Henry Miller, anda enrolada com todos (sublinho: todos) os seguranças da biblioteca. Não admira que o marido, um senhor simpatiquíssimo, a venha todos os dias buscar à porta da biblioteca – quererá com certeza evitar que se enrole com a farmacêutico, o talhante ou o caixa de supermercado. Ela, sempre muito bemposta, como uma verdadeira senhora, desvia o olhar à saída. O marido, coitado, pressentirá nos sorrisos de todos os homens a traição da mulher, mas nada pode fazer. À hora de almoço, a casa de banho da biblioteca é um regabofe – disse-me a Deolinda, que eu vou sempre almoçar a casa. A ninfomania não devia ser caso para deboche, mas claro que é. Creem todos num excesso de prazer que os diverte, mas que talvez não exista – sendo este inversamente proporcional ao desejo. As pessoas normais têm pequenos e sonegados desejos e grandes prazeres; a Dolores terá, porventura, um grande desejo para um prazer que nunca chega. 

Mas, voltando ao assunto das requisições polémicas, ainda hoje passou por cá Herminio, que armou mais uma vez um escândalo quando lhe dissemos que não estava disponível o exemplar bilingue da “União do céu e do inferno” de William Blake (Cota -1 BLA SET). Recusava-se a acreditar que mais alguém pudesse ter interesse naquela obra. Como é paranoico, queria que revelássemos, à força, a identidade do outro leitor. Perante a nossa perentória recusa, acusou-nos de querermos, por alguma razão, ocultar-lhe o livro. Nem me atrevi a dizer-lhe que o prazo de devolução já fora largamente ultrapassado e o único exemplar, com toda a probabilidade perdido.

Completamente fora de si, começou a citar o poeta:

Tyger Tyger, burning bright,
In the forests of the night;
What immortal hand or eye,
Could frame thy fearful symmetry?

mas ninguém percebeu o que fazia, pelo que foi rapidamente manietado pelos seguranças e colocado fora da biblioteca uma vez mais. É comum a ignorância se sobrepor à inteligência – uma lei da vida – é apenas uma questão matemática. Aludia o Hermínio à problemática apresentada pelo poeta acerca bondade de deus. Poderia a mesma mão que concebeu o cordeiro conceber o tigre? Como pode a sua beleza esconder tamanha ferocidade? Como pode a mesma mão que compõe uma mente delicada e inteligente, conceber também, e com esmagadora abundância, idiotas, egoístas e ignorantes? – acrescento eu. Como pode a mais delicada das inteligências esconder-se por detrás de um pullover fora de moda, impregnado de odores corporais retardados, umas calças de bombazina cheias de nódoas e uns ténis brancos mal apertados? O Herminio não está equipado para sobreviver nesta ou em qualquer outra época. É doido – pois claro. Não lhe ocorre que tem de tomar banho regularmente e comprar roupa nova todos os anos. É isso que fazem as pessoas sãs. 

A Sara, por exemplo, adora a repetição. Para além de todos limites humanamente concebíveis. Pede, meses a fio, sempre o mesmo livro, até à exaustão. No entanto, será que a repetição é assim tão estranha? Induz segurança, previsibilidade, mas também ansiedade. Não tendo dinheiro para comprar os livros, está dependente, como o Hermínio, da disponibilidade dos mesmos. Esta semana, a chefe decidiu encaixotar toda a secção infantojuvenil, que deverá passar para o piso 1. Ninguém sabe onde para o ‘Fantasma da Ópera’ e seria puramente irracional reabrir todos os caixotes, revirando tudo, só para que a Sara o pudesse ler pela quinquagésima vez. Vamos, pois, infligir-lhe esse pequeno sofrimento, sugerindo-lhe em alternativa as ‘Mulherzinhas’ ou uma qualquer história com princesas da Disney. Afinal, só terá de defrontar hoje, logo hoje, toda uma nova realidade. Nada de mais. Algo perfeitamente normal. Algo que toda a gente quer – variedade, coisas novas. Mas a Sara não. Coloca as mãos em volta das orelhas, pois não nos pode ouvir durante mais um minuto, e sai a correr porta fora.

Sou bastante empática. Em especialmente com pessoas especiais. O David, contudo, é outra história. O David é especialmente irritante. É nosso colega e rouba objetos sem qualquer valor, apenas para irritar quem precisa deles. Desaparecem cabos dos computadores, o agrafador, uma caneta, folhas com apontamentos. Como se desloca numa cadeira de rodas, toda a gente tem pejo de o acusar, apesar de todos desconfiarem que é o autor. No outro dia desapareceu a minha caneta favorita. Ele sabia que era a minha caneta favorita. Foi apenas por isso que a tirou. Olhei-o diretamente nos olhos. Ele percebeu que eu estava furiosa. Dirigi-me a ele e empurrei-o da cadeira de rodas abaixo. Todas as minhas colegas gritaram aflitas e um dos seguranças agarrou-me pelos braços, apesar de eu estar perfeitamente quieta. Há quem ache que não sou certa da cabeça. “Dá-me a merda da caneta, David! Tu sabes que só consigo escrever com aquela caneta. Dá-me a merda da caneta!” Depois percebi que não valia a pena. O David é apenas mau. Da mesma forma que as romãs são vermelhas, o David é mau – à primeira vista, sem qualquer razão aparente, apenas para atrair a atenção. Para alguns animais, como eu, é impossível de resistir e levar as suas sementes para longe. O julgamento moral, contudo, é neste, como noutros casos, prejudicial à fruição de todo o catálogo humano. Devemos sobretudo ler, sem ser aparentemente infetados pela leitura, embora isso seja obviamente impossível – e, portanto, contentemo-nos com o fato de não nos sentirmos, pelo menos, envenenados. Pois nem todos os alimentos se destinam a todos os animais e o vermelho tanto pode ser um convite, como um aviso.

O Octávio, por outro lado, é apenas maçador. Não faz mal a uma flor, mas é chato que dá dó. Uma conversa com ele poderia demorar vários dias e isto sem nos afastarmos muito dos preliminares. É que cada palavra é escolhida com toda a precisão, pecando sempre por excesso de erudição, até ao ponto de ser quase ininteligível. É capaz de me dizer em jeito de cumprimento: “Como está formosa donzela?... Acordei com o dilúculo [aurora], mas estou, como direi... ainda um pouco selenita. No transbordo entre as trevas noctâmbulas e a plenitude solar. A menina é adoradora de Selene ou, por outro lado, mais uma heliólatra?”. As minhas colegas olham-no frequentemente com horror, o que não o impede de continuar o seu monologo infindável. Eu, por outro lado, descobri que o consigo embaraçar com facilidade, coisa que parece aguardar com entusiasmo, embora resulte numa afasia temporária. Para tal, respondo algo como: “Mestre cavaleiro das trevas, bem sabeis que também eu sou uma adoradora do luar. As minhas danças noturnas exauriram, como é hábito, o meu ânimo. Estou derreada de tanto bailar em torno das pálidas e fugidias sombras lunares. A frescura do orvalho noturno sobre a minha fraca e desvelada penugem resultou num maldito resfriado. Cesse pois o seus circunlóquios e diga de sua justiça.”. O Octávio engole em seco, olhando-me muito sério, e maior parte das vezes não é capaz de articular uma frase completa. O seu embaraço e as suas divagações são perfeitamente inofensivas. É apenas um chato; tão chato, que chega a ser divertido.

Para a Emília, porém, a vida não é de todo divertida. Vive numa ansiedade permanente. O fim do mundo está iminente. Há momentos em que ninguém a consegue convencer do contrário. Quando o fim não está iminente, a sua vida não é melhor. A incerteza ou a certeza do fim do mundo, não são muito diferentes. O mundo vai acabar; e é tão mau ter a certeza do dia e hora, como estar completamente ignorante do mesmo. Maior parte dos dias não consegue sair de casa, não consegue sair da cama, não consegue sequer esticar os pés e fica enrolada como um bicho de contas, com o lençol sobre a cabeça. Qualquer movimento é impossível. Há dias melhores, em que se aventura a sair à rua; vai até à biblioteca. É uma miúda querida e sensível, muito inteligente. Mas ontem ninguém conseguia convencê-la de que aquele dia de inverno, em que anoitecera mais cedo do que esperava, era um dia como todos os outros, e que nada de mal a esperava do lado de fora da biblioteca; de que as nuvens escuras estavam apenas carregadas de água e o vento não tinha qualquer intenção que não fosse alisar as diferenças de pressão atmosférica; de que poderia caminhar tranquilamente até casa, a duas ruas de distância, sem que nada de mal lhe acontecesse. Era ainda pior quando as minhas colegas a tentavam chamar à razão, explicando-lhe amigavelmente que tudo aquilo era produto da sua imaginação e que, se desse um “passo atrás”, veria como nada do que estava a sentir fazia sentido. Mas essas explicações faziam-na apenas sentir-se embaraçada, sem, contudo, abalar a sua querença de que não só a sua vida, como o mundo inteiro, estava à beira do fim. Não era algo que pudesse racionalizar, era um sentimento interior, profundo, inelutável. 

Mas nem toda a gente é maluca.

A Idalina é muito bem casada. O marido é vereador da cultura há muitos anos, o que lhe confere um estatuto diferente na biblioteca. Ninguém diz nada, mas é isso que acontece. Têm uma vida confortável. Dois filhos já crescidos, que estão fora, na faculdade. A Idalina esteve em tempos apaixonada por um escritor de pouca nomeada. Felizmente conseguiu reprimir esse impulso. Não que o dito escritor não a amasse – tudo indica o contrário –, mas esperava-a uma vida incerta, cheia de percalços financeiros. É que o escritor era um homem de paixões e princípios, o que costuma ser contrário ao conforto material. O marido, por outro lado, era um homem prático. Sabia aproveitar o que estava ao alcance da sua mão. Vestiam bem. Almoçavam em restaurantes da moda. Tudo com modesto salário do erário público – o dinheiro parece que esticava. Ao domingo, liam o jornal no terraço de sua casa, enquanto bebiam um sumo de laranja, café e torradas preparados pela Ermelinda. Não falavam muito – marido e mulher – essencialmente acerca de assuntos práticos, como por exemplo: eletrodomésticos. Já há algum tempo que dormiam em quartos separados, o que era muito mais confortável. No outro dia, o tal escritor apareceu no jornal: suicídio. Idalina sentiu pena, é claro, mas lá no fundo suspirou de alívio – olha se tem casado com ele, via-se logo que era cronicamente deprimido, pensava demais.

Já o Carlos é um homem irrepreensível. O carro está sempre impecavelmente limpo, por dentro e por fora. Mandou instalar um sistema de som espetacular. Tão bom ou melhor do que o que tem em casa. Onde também tem uma televisão enorme. Gosta de filmes de ação. O cabelo também está sempre perfeitamente aparado. Vai regularmente ao ginásio, veste camisas engomadas com precisão e cheira bem. Que mais se pode pedir de um homem? Vê-se logo que é um homem como deve ser. Alguém em quem podemos confiar. Que se mostra aos outros tal qual é. Pode alguém mostrar o que não é?

E as mães? Há toda uma classe de mulheres que são mães. Que dizem: “O meu João”, “A minha Clarinha”, “O meu Miguel” assim ou assado; “Aquele miúdo põe-me doida”, “é tão querida, mesmo fofinha” ou ainda “tem o mesmo feitio do pai, tal e qual”. Que dizem ainda: “Quando fores mãe vais ver” e perguntam insistentemente quando é que o próximo se vai casar, ter um filho ou um próximo filho – como se procurassem uma validação pela imitação. É como se fosse uma espécie de loucura coletiva. Mas não é. Trata-se apenas de assegurar a continuação da espécie – inevitável. 

Ainda há quem venha à biblioteca por causa dos livros. Quanto a mim, venho apenas observar a vida selvagem – teorias.

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