CARTA A UM POETA MORTO
Lisboa, 22 de novembro de 2020
Caro Senhor Rainer Marie Rilke,
Procuro o seu conselho. Não sou um jovem poeta, mas tal não significa que não precise do seu parecer. Todos precisam de algum conforto, de alguma confirmação – não só os jovens e não só os poetas. Não espero que me responda. Por certo estará bastante ocupado com outros afazeres – estou plenamente ao corrente da sua presente situação. Mas creio que o mero ato de lhe escrever produza alguns resultados. A grande vantagem da escrita, em que se inclui também este género correspondência unilateral, é que nos permite, por um lado, ordenar as ideias, por outro, uma convivência sem reparo com nós próprios. Uma verdadeira correspondência é muito mais rica, bem o sabe, não preciso de lhe dizer, mas também muito mais rara. O correspondente tem de ser necessariamente diferente, mas em certo aspeto igual. Coisa que é difícil de explicar, mas não de perceber.
O dilema que tenho enfrentado, meu caro senhor, é o seguinte: deve um homem dedicar todo o seu tempo e alma à literatura?
Por um lado, sempre considerei que a literatura, tal como todas as artes, não deveria nunca constituir o ganha-pão de um indivíduo. Essa parece-me ser a única forma efetiva de a exercer de forma completamente livre. Toda a arte é comunicação, procura o outro; mas antes disso, e para isso, deve procurar honestamente o próprio; de forma desapiedada, até mesmo escandalosa. Deve também ser arrojada na forma, fiel a uma estética, e ainda que não tenha pretensões de reinventar a literatura – história de muitos e inadvertidos plágios, um tecido tantas vezes cerzido e remendado – devo reservar-me o direito de, fracassando ou não, escrever o que a poucos possa agradar. Temos, deverá com certeza concordar comigo, como guia, apenas o nosso gosto e julgamento – na vida em geral e ainda mais na arte. Apenas nele podemos confiar. A sensação de plenitude que invade o nosso peito perante a leitura de um bom verso (seja nosso ou de outrem) é inconfundível. Não se pode comparar com os equívocos da opinião alheia, por muito considerada e querida que nos seja. Fazer depender, pois, o conforto de uma refeição, da aprovação geral de um poema estará reservado a poucas e abnegadas almas, para quem qualquer conforto físico é de somenos perante a questão moral e de princípio. Tenho, pois, dúvidas de que pertença a esse seleto grupo.
Mas a questão não é de todo clara ou linear. Um homem que não dispõe para si de dois terços do seu dia é um escravo – escreveu Nietzsche, com toda a razão. Incluo-me nesse grupo – sinto-me um escravo – como a maioria, por certo. Deverei aceitar essa situação? Devo comprar a minha liberdade ou, por outro lado, simplesmente tomá-la, sem medos, como a minha única e definitiva propriedade. É que o tempo, atestam os melhores estrategas militares, é a única coisa irrecuperável. E não sendo já, como lhe disse no início desta missiva, de tenra idade, temo ter já desperdiçado demasiado tempo. Do ponto de vista universal o tempo talvez seja ilimitado, mas do ponto de vista individual é claramente finito e ininterrupto – agora mesmo está a decorrer.
Alguns poderiam aconselhar-me o equilíbrio – estou quase certo de que o senhor não o faria. (Apetece-me tratá-lo por amigo, o que seria com certeza um abuso do ponto de vista formal, mas não no contexto desta carta, cujo real destinatário sabeis quem é.) O equilíbrio é essencial apenas a uma coisa: à estagnação.
Despeço-me com toda a consideração. Não espero resposta sua. Ajudou-me muito, meu caro amigo.
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