OS VAGABUNDOS DO DHARMA
Autor: Jack Kerouac
Editora:
Relógio de Água
Tradução: Margarida Vale de Gato
Falar de Kerouac é falar de ‘Pela
estrada fora’ (‘on the road’), mesmo que não seja esse aqui o livro em questão.
Foi afinal por causa desse livro, que li muitos outros. Da sua autoria (‘Big
Sur’, ‘Viajante solitário’ e, agora, ‘Os vagabundos do Dharma’) e de seus
companheiros beatnicks (Ginsberg William S. Burroughs, etc). Reza a lenda
que ‘on the road’ foi escrito durante vinte dias e vintes noites, sob o efeito
de benzedrina (anfetamina muito popular à época), só parando para trocar as
camisas encharcadas em suor. A realidade não terá sido exatamente esta. Este
episódio será referente à última reescrita do livro, que já tinha sido
rejeitado várias vezes devido ao seu formato invulgar, sem parágrafos ou
pontuação digna de nota, formando uma mancha negra contínua, de facto
semelhante a uma estrada (Kerouac escrevia muitas vezes em papel de telex, para
não ter de interromper para mudar de folha). Mas estes últimos vinte dias, com
todas as concessões artísticas que Kerouac fez, aproximou o livro se um formato
mais regular, talvez mais aburguesado, mas era afinal também para eles, ou
sobretudo para eles, que Kerouac escreveu – e não digo isto com nenhum sentido
depreciativo; são afinal os burgueses que precisam de ser contaminados pelo seu
entusiasmo pela vida, pela verdadeira vida.
Quando, há uns dois ou três anos,
rebusquei as minhas estantes à procura dos livros que mais me marcaram este foi
um deles. Não pela escrita apurada – apesar da facilidade que com se lê ser
enganadora. Não por se debruçar sobre os temas essenciais da condição humana –
coisa que também o faz embora de forma talvez diversa do cânone. É porque é
simplesmente entusiasmante. É porque Kerouac adora pessoas e criou, à luz dos
seus próprios amigos, personagens fascinantes. A nota que escrevi há dois ou
três anos, e que resume bem o meu sentimento, foi a seguinte:
«Depois de
o lermos, tudo o que queremos é sair porta fora, à aventura, procurando a vida
em vez de a esperar. Um dos livros mais inspiradores que li.»
Falando agora dos ‘Vagabundos do
Dharma’. Pode dizer-se que a fórmula e o estilo dos seus livros (pelo menos
aqueles que li) é muito semelhante. Kerouac tinha até o projeto de os reunir a
todos numa grande obra, que cariz autobiográfico. Algo semelhante à recherche
proustiana, por quem tinha uma grande admiração, e de quem, aliás, tomou alguns
aspetos do seu estilo, embora de forma diversa – os frases proustianas,
bifurcam em todos os sentidos, tem a forma do tempo, que é sobretudo memória,
enquanto as de Kerouac seguem apenas em frente, um precipitar contínuo da ação;
são ritmo e não sinuosas como o tempo proustiano. Um exemplo, logo na frase de
abertura:
«Saltando
para um comboio de mercadorias vindo de Los Angeles, no começo da tarde de um
dia de finais de Setembro de 1955, meti-me num vagão aberto e deitei-me com o
meu saco de campismo debaixo da cabeça e as pernas cruzadas e contemplei as
nuvens enquanto rodávamos para norte em direcção a Santa Bárbara.»
E assim se estabelece, numa frase,
o tom para o resto do livro. Não será brilhante, como as frase de abertura de
Kafka, que são como punhais nas costelas do leitor (recordemos a fase de
abertura da Metamorfose (ou Transformação): «Quando uma manhã Gregor Samsa acordou
de sonhos inquietos, viu-se na sua cama transformado num monstruoso insecto»),
mas cumpre o objetivo. Kerouac, como todos os grandes escritores, tem uma voz;
algo de absolutamente sensível e inconfundível. O escritor que a mais
inconfundível de todas as vozes é, para mim, Dostoievski. Pegar num livro dele,
é tal como no caso de Kerouac, voltar a falar com um velho amigo.
Não posso dizer que esta conversa
me tenha entusiasmado tanto as anteriores. Talvez por essa forma repetida.
Talvez pelo tom excessivo, quase caricatural, com que retrata a subcultura beat
de inspiração budista de São Francisco. Cheio de dharmas, nirvanas e bodisatvas.
Mas ainda assim é um livro que entusiasma e contamina. Faz-nos pensar o quão errado
pode ser os desconforto burguês em que o lemos; faz-nos desejar a liberdade de
nada ter.
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