A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO
Autor: Pierre Clastres
Editora: Antígona
Tradução:
Manuel de Freitas
“A sociedade contra o estado”, do filósofo, antropólogo e etnólogo
francês Pierre Clasters, é uma obra incontornável no pensamento anarquista.
Publicada em 1974, reúne um conjunto de ensaios do autor em torno da natureza do
poder, sendo o resultado de uma intensa convivência com os índios sul-americanos
e seu estudo. Viagens e vivências que o levaram a um afastamento do meio académico
tradicional.
Estas sociedades, segundo a tese do autor, são, não só,
sociedades sem estado, mas também sociedades contra o estado. Sociedades verdadeiramente
igualitárias, que desenvolveram mecanismos de equilíbrio que impedem a concentração
de poder.
Esses mecanismos assentam essencialmente no esvaziamento de
poder do chefe tribal. Ele é o líder da tribo e tem o dom e o dever da palavra,
que usa de forma a manter a tribo coesa e harmoniosa, mas não detém qualquer tipo
de poder coercivo sobre os seus membros. O chefe é invariavelmente o homem com menos
bens da tribo, pois deve ceder tudo o que lhe pedem. Tem apenas o privilégio de
ter várias mulheres.
Somente em tempo de guerra é dado ao chefe (que poderá ser
diferente do chefe do tempo de paz) a prerrogativa de dar ordens e ser
obedecido. Uma vez reestabelecida a paz e lhe retirado todo o poder.
«(…) O chefe está ao serviço
da sociedade, é a própria sociedade – verdadeiro lugar do poder – que exerce
enquanto tal a sua autoridade sobre o chefe. É por isso que se torna impossível
para o chefe inverter essa relação em seu proveito, pôr a sociedade ao seu
próprio serviço, exercer sobre a tribo o que chamamos o poder: a
sociedade primitiva nunca toleraria que que o seu chefe se transformasse em
déspota.»
Os mecanismos utilizados pelas tribos para se manterem coesas
e reforçar a sua interdependência são extremamente interessantes. Por exemplo,
é hábito entre os índios, sob pena de caírem em desgraça, não comerem nenhuma
peça de caça que capturem. O caçador só come, portanto, da caça que os outros
membros da tribo tenham capturado. Mais do que partilhar o que conseguiu,
exclui-se a si próprio o seu usufruto; transformando posse em relação
comunitária.
Um outro exemplo desta procura fundamental do equilíbrio
pode ser encontrada entre os índios Guaiaquis, onde existe um desequilíbrio do
número mulheres, face aos homens. Se seguissem o regime matrimonial normal de
uma mulher para um homem, restariam um conjunto de homens celibatários, que constituiriam
uma fonte de instabilidade entre a tribo. Para obviar a esse problema os homens,
embora contrariados, são forçados a admitir que a sua mulher escolha e mantenha
um segundo marido. Aceitam-no em prol da estabilidade e harmonia de toda a tribo.
A visão destas sociedades como primitivas, arcaicas e não
evoluídas, deriva de uma visão etnocêntrica do ocidente. Uma visão segundo a qual, estas sociedades
eram apenas um ponto no sentido único da história, que caminhava na direção das
sociedades altamente estratificadas, em que o estado é usado como garante da
ordem e do exercício coercivo do poder. Estas sociedades sem escrita, sem
história, sem estado, eram sociedades em falta. Eram vistas como produto de uma
economia de subsistência, assente em meios tecnológicos escassos, e consideradas
menos evoluídas. Tal hierarquização, demonstra o autor, é puramente arbitrária,
senão errada.
No que diz respeito à economia de subsistência, sabe-se que
os índios despendiam apenas 3 ou 4 horas por dia em atividades que se destinavam
a assegurar a sua subsistência; sendo, ainda assim, comum obter um excedente que
era dissipado em festas e com convidados. Os restante tempo era deliberadamente
dedicado ao ócio, pois não viam qualquer propósito em produzir para além do
necessário. Adotavam de bom grado novas tecnologias, tendo como resultado não
uma maior produção, mas mais tempo livre. É difícil não classificar esta atitude
como sensata – em termos individuais e ambientais.
Os ritos de iniciação na idade adulta, por vezes de uma
crueldade extrema, constituem a única escrita destas sociedades. Os próprios
corpos dos mancebos são marcados, para que para sempre se recordem aonde
pertencem e o que valem: nem mais, nem menos do que qualquer outro.
«As sociedades arcaicas,
sociedades da marca, são sociedades sem Estado, sociedades contra o Estado.
A marca no corpo, igual em todos os corpos, proclama: Tu não terás o desejo
do poder, tu não terás o desejo de submissão. E esta lei não separada apenas
pode inscrever-se num espaço não separado: o próprio corpo.»
Para terminar, uma enigmática frase de um sacerdote karai,
um velho xamã guarani, acerca da infelicidade dos homens é decifrada:
«As coisas na sua totalidade
são uma; e, para nós que não desejámos isso, são más.»
«Articulação inesperada, ao ponto de fazer sobressaltar
até à vertigem a mais longínqua aurora do pensamento ocidental», diz-nos o
autor. “As coisas na sua totalidade são uma”, não quer dizer que todas as coisas
do mundo são uma e a mesma coisa, mas sim que cada uma das coisas, considerada individualmente,
é una; o Um é a causa da infelicidade e, portanto, «o Um é o Mal». Para
o sábio guarani o Um é o sinal do finito, do imperfeito, do perecível. A aplicação
rigorosa do princípio da identidade conduz-nos a esta conclusão:
«dizer que A = A, que isto é
isto, que um homem é um homem, é declarar ao mesmo tempo que A não é não-A, que
isto não é aquilo, e que os homens não são deuses. Nomear a unidade nas coisas,
nomear as coisas segundo a sua unidade, é igualmente conceder-lhes um limite, o
finito, o incompleto. Trata-se de descobrir tragicamente que esse poder de
designar o mundo e de determinar os seus seres – isto é isto e não outra coisa,
os Guaranis são homens e não outra coisa – é apenas a irrisão do verdadeiro
poder, do poder secreto que pode silenciosamente enunciar que isto é isto e ao
mesmo tempo aquilo, que os Guaranis são homens e ao mesmo tempo deuses.»
«O Bem não é o múltiplo, é o
dois, simultaneamente um e o seu outro, o dois que designa veridicamente os
seres completos.».
Isto fez-me pensar num tema completamente diverso: a arte
enquanto espelho, e mesmo enquanto paradoxo. A divindade de um objeto artístico
consiste precisamente na sua dualidade latente, na possibilidade de ser uma e
outra coisa, consoante o observador. De ser tão total, que se torna impossível
imaginar que fosse de outra forma.
O anarquismo enquanto temática e interesse remete-me para a
Organização, distopia em construção.
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