Almas gémeas

Um homem obcecado nunca se encontra sozinho. Ele próprio tem esta perceção, pois prescinde com facilidade de qualquer outra companhia. Para os outros isto é absolutamente claro, pois abordam-no sempre com alguma reserva, como quem interrompe uma conversa.

Coleciono fotografias. Fotografias de pessoas mortas.

Não consigo explicar porquê. Porque haveria de ter uma razão. Sinto-me bem e isso basta. Trabalho incessantemente na minha coleção. Classificando e ordenando. Admirando, de olhar perdido, as suas faces lívidas, ausentes…

Trabalhava numa funerária no centro da cidade, o que facilitava obviamente as minhas atividades. Mas fui despedido.

Vagueio agora pela cidade. Procuro as igrejas, as casas mortuárias, as portas dos hospitais, cemitérios; quero aproximar-me da morte, sentir o seu frio beijo. Começaram, porém, a notar a minha presença injustificada e enxotam-me como a um cão. Sento-me então de longe, nos bancos de jardim, olhando o curioso desfilar de vultos negros que entram e saem num ensaiado ritual. Porque estão tristes? A morte é tão bela. Nada se lhe pode acrescentar ou retirar.

Retiro do bolso um envelope com algumas fotografias. Homens. Mulheres. Brancos. Negros. Ricos. Pobres. Todos mortos. Quietos. Parados. Nada a pode vencer.

À minha direita, por detrás de mim, está um parque infantil. Um rapazinho olha fixamente para mim. Tem uma tez branca, como a minha, e os olhos inflamados. Em vez de desviar o seu olhar, levanta-se do cavalo de baloiço e, lentamente, contornando a vedação começa a dirigir-se a mim. Acompanho o seu percurso com os olhos até que se senta a meu lado.

Tenho ainda as fotografias nas mãos. Não as escondi. O rapazinho, que não terá mais do que 6 ou 7 anos, olha curioso para elas.

Sem dizer uma palavra, mete a mão no bolso e retira uma pequena agenda. Por momentos os nossos olhos encontram-se e depois fixam-se novamente no pequeno livro que me quer mostrar. Abre-o lentamente, com todo o cuidado.

Por entre as folhas da velha agenda, estavam pequenas flores prensadas. Estavam secas, mas conservavam ainda as suas cores garridas. Eram belas.

– Salvei-as – disse-me.

Comentários

  1. Eita. Esse quando crescer em. Parabéns!!! A frase das fotografias dos mortos deu um impacto que nossa. Parabéns!!!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares