O psicólogo
Joaquim trabalhava no escritório de um grande banco. Vestia todos os dias um fato impecável, uma camisa branca imaculada e usava a gravata bem apertada num nó perfeito. Era uma pessoa séria, confiável e ninguém lhe poderia apontar qualquer falta.
Tomava as suas decisões de forma perfeitamente lógica e racional, qualidade que muito agradava aos seus superiores. Em nada se afastava do bom caminho. Ambicionava aquilo que os outros esperavam que ambicionasse, sem excesso ou desprezo, sendo naturalmente leal.
Sua esposa era perfeita. Era loira e bonita; boa mãe dos seus dois equilibrados filhos (um menino e uma menina); apoiava o seu marido nas suas ambições profissionais e acima de tudo amava-o – genuinamente.
Os seus colegas invejavam o seu carro, a sua casa e também a sua mulher. Não o manifestavam em público, muito menos na sua presença. Nem mesmo em tom de brincadeira, pois Joaquim era também muito regrado no que respeita ao convívio social com os colegas. Convivia disciplinadamente com eles, o suficiente para criar um belo espírito de equipa, mas nunca para além do estritamente necessário.
Corria tudo pelo melhor. Joaquim acabara de ser novamente promovido. O seu filho mais velho era obviamente bom aluno, o melhor da turma. A sua mulher fazia ainda apaixonadamente amor consigo e ele amava-a de volta. Aos domingos iam almoçar fora, ao restaurante do costume, onde todos o conheciam e respeitavam… Que mais pode um homem querer?
Pois bem. Nada. Um homem não precisa de mais nada. Mas quando tudo é perfeito, é lógico que nada pode melhorar. Nada pode melhorar. Se pensarmos bem, vemos que esta é de fato uma posição bastante perigosa. As coisas irão por certo piorar, pois essa é a natureza do universo. Mesmo o mais reto dos homens pode falhar. E mesmo que não falhe, pode a vida tornar-se-lhe irredutivelmente adversa.
De certo modo, foi isto que aconteceu a Joaquim. Foi traído pelo seu próprio corpo. Uma falha física – talvez seja essa a melhor maneira de colocar a questão. Pelo menos foi assim que tudo começou.
Na terça-feira Joaquim acordou às 3 da manhã e não conseguiu dormir mais. Nessa altura sentiu-se profundamente acordado, se assim o podemos dizer, como se tivesse dormido tudo o que desejasse e ainda mais. De olhos abertos no escuro não sabia, contudo, o que fazer. Ana, a sua mulher, dormia profundamente a seu lado, pelo que considerou pouco adequado perturbar-lhe o sono para fazerem amor.
Depois de confirmar por diversas vezes as horas, levantou-se e foi à cozinha beber água. Não quis deitar-se novamente, por isso decidiu adiantar as suas 3 séries de 10 flexões de braços que fazia diariamente. Sentiu-se estranho, porque não as fazia à hora habitual, e talvez por causa disso interrompeu a terceira série a meio. Não conseguiu continuar, o que lhe causou uma agonia ainda maior. Começou então a pensar nisso e ao mesmo tempo naquilo que haveria de fazer até serem horas de se arranjar para ir para o trabalho. Depois em como se haveria de sentir cansado durante o dia, pois não descansara nada à noite. E com tudo isto ficava de fato cada vez mais cansado, mas não ao ponto de ficar com sono e dormir. Foi então de novo para a cama e fez amor com Ana que estranhou a hora pouco habitual.
O dia foi difícil. Porém, foi apenas o primeiro de muitos. Pois que desde esse fatídico dia, Joaquim não conseguiu dormir mais. Pelo menos não um sono descansado. Sempre que por momentos fechava os olhos começava a sonhar. Mas os sonhos não eram de todo distinguíveis, na sua natureza, do seu estado insone – tal como quando estava acordado, os pensamentos encadeavam-se sem descanso. Sentia-se preocupado, como se tivesse um assunto por resolver. Contudo não conseguia perceber qual.
Começou por esconder as suas insónias dos outros, pois não as conseguia justificar. Ficava deitado na sua cama, de olhos fechados, mas sem dormir. As noites eram longuíssimas. Quando confidenciou à mulher e aos colegas este seu estado, causou entre todos uma certa estranheza.
Começava a deixar de pensar de forma lógica. Estava, é claro, muito cansado; cada vez mais cansado. Outra coisa não seria de esperar.
Havia já uma semana que não dormia. As olheiras estavam agora bem marcadas, razão pela qual usava frequentemente óculos escuros. A roupa já não tinha o mesmo alinho. Eram ainda muito subtis estas alterações, mas por todos claramente notadas, ainda que por vezes apenas como um desconforto difícil de identificar. A barba não estava impecavelmente aparada. O cabelo não estava perfeitamente penteado e a gravata ligeiramente torta e frouxa. Noutra pessoa, estes pequenos desalinhos não seriam sequer notados, mas em Joaquim eram.
O seu comportamento e discurso também mudaram. Por vezes hesitava, arrastava a voz. O seu olhar perdia-se por segundos nas folhas que o vento de outono libertava das árvores do lado de fora da janela. Outras vezes, enquanto falavam com alguém, fixava um ponto ligeiramente acima do ombro do seu interlocutor, como se observasse algo que escapava ou espreitava, causando a este um estranho incómodo.
Mas o pior estava por acontecer. Durante o almoço sentiu uma súbita náusea e não conseguiu terminar a sua refeição preferida – ele que a tomava meticulosamente, sempre à mesma hora, no mesmo restaurante, e até que o prato ficasse impecavelmente limpo. De tal forma se sentiu acometido por aquele mal-estar, que se levantou de imediato e saiu do restaurante sem pagar.
Assim que chegou à rua respirou fundo. O que se passava consigo, perguntou. Algo lhe fazia pressentir que este não seria um estado temporário, mas sim algo permanente. Este raciocínio, apesar de pouco lógico, estava de acordo com tudo o que experienciara na última semana e sentiu-se de certa forma reconfortado por isso.
Consultou um médico, mas, tal como antevia, este nada tinha para lhe dizer.
Dirigiu-se de seguida a um psicólogo. Este disse-lhe, cuidadosamente, que talvez tivesse desperdiçado a sua vida, sendo essa a razão do seu incómodo. Esta condição – disse-lhe – era de fato muito mais comum do que se pensava, não sendo razão para desespero. Bastava seguir os seus sonhos, resolver os problemas que o atormentavam e tudo voltaria ao normal. Iria sentir-se aliás muito melhor do que anteriormente. Toda esta conversa era por demais surpreendente para Joaquim. Seria este psicólogo louco!? Como assim desperdiçar a vida? A sua vida era perfeita. Toda a gente o invejava – estava certo disso.
Saiu lentamente do consultório, pensando de tal forma fixamente no que acabara de ouvir, que quase não conseguia mexer os pés. Arrastava-os como um velho.
Durante mais uma semana foi incapaz de dormir ou comer. Sentia-se por vezes extremamente agitado e de seguida profundamente cansado; quase sempre nauseado, especialmente quando na presença de comida, que não conseguia de todo tolerar. Até mesmo a visão de outros a comer ser tornara excruciante.
Estava de tal modo esgotado que se julgava prestes a morrer. Os malares tornaram-se mais salientes, os olhos profundamente encovados, negros e doentes.
Só queria conseguir pensar racionalmente e tomar conta da sua vida. Fazer o que é suposto todas as pessoas fazerem e sentir-se contente por isso. É pura maldade fazerem-me isto, pensava.
Pediu dispensa do trabalho, pois era de todo impossível concentrar-se. A sua mulher começava agora a olhá-lo de soslaio e ninguém a poderia censurar. Joaquim perdera todo o desejo sexual; tinha um ar de louco e ninguém conseguia perceber a razão do seu comportamento. Estava certo de que injustamente o culpavam a ele – que nada podia fazer –, por tudo o que se passava…
O pior é que não sabia o que tinha de fazer para se sentir bem novamente. Se lhe dissessem – torna-te poeta que isso passa – tê-lo-ia feito. Mas não sabia de todo o que tinha de fazer. Pela primeira vez na sua vida, não sabia. Talvez fosse essa a origem do problema.
Tentou então pensar. Concentrar-se e pensar. O que deveria fazer? O que é que queria fazer?
Era demasiado difícil. Tudo estava perdido. O inferno é o inferno, porque não tem fim – e era assim que Joaquim se sentia, num inferno sem fim.
Poderia suicidar-se. Isso era uma opção. Era um propósito. Uma deliberação. Decidiu fazê-lo.
Comprou uma pistola e munições, foi para casa e sentou-se na poltrona do escritório. Carregou a arma. Respirava de forma acelerada. Colocou o cano na boca. Estava frio, gelado, e bateu-lhe involuntariamente nos dentes. A sua língua chegou-se à frente e sentiu o sabor a metal. Deixou-se então cair para trás, apoiando a nuca transpirada de encontro à poltrona de couro e descansou durante alguns minutos, tentando ganhar coragem. Quase que dormia, quando foi desperto pelo som familiar da porta da entrada que se abria. Logo de seguida, risadas. O que faria a Ana em casa a meio do dia. Pareceu-lhe reconhecer a outra voz, a de um homem, embora não o conseguisse identificar.
Levantou-se lentamente e aproximou-se da porta do escritório que estava encostada. Os risos continuavam, cada vez mais animados. Espreitou.
Um homem, baixo e careca, agarrava e despia Ana, que se afogueava em torno do seu curto pescoço. Era o cabrão do psicólogo.
Armou a pistola e apontou – não falharia.
Tomava as suas decisões de forma perfeitamente lógica e racional, qualidade que muito agradava aos seus superiores. Em nada se afastava do bom caminho. Ambicionava aquilo que os outros esperavam que ambicionasse, sem excesso ou desprezo, sendo naturalmente leal.
Sua esposa era perfeita. Era loira e bonita; boa mãe dos seus dois equilibrados filhos (um menino e uma menina); apoiava o seu marido nas suas ambições profissionais e acima de tudo amava-o – genuinamente.
Os seus colegas invejavam o seu carro, a sua casa e também a sua mulher. Não o manifestavam em público, muito menos na sua presença. Nem mesmo em tom de brincadeira, pois Joaquim era também muito regrado no que respeita ao convívio social com os colegas. Convivia disciplinadamente com eles, o suficiente para criar um belo espírito de equipa, mas nunca para além do estritamente necessário.
Corria tudo pelo melhor. Joaquim acabara de ser novamente promovido. O seu filho mais velho era obviamente bom aluno, o melhor da turma. A sua mulher fazia ainda apaixonadamente amor consigo e ele amava-a de volta. Aos domingos iam almoçar fora, ao restaurante do costume, onde todos o conheciam e respeitavam… Que mais pode um homem querer?
Pois bem. Nada. Um homem não precisa de mais nada. Mas quando tudo é perfeito, é lógico que nada pode melhorar. Nada pode melhorar. Se pensarmos bem, vemos que esta é de fato uma posição bastante perigosa. As coisas irão por certo piorar, pois essa é a natureza do universo. Mesmo o mais reto dos homens pode falhar. E mesmo que não falhe, pode a vida tornar-se-lhe irredutivelmente adversa.
De certo modo, foi isto que aconteceu a Joaquim. Foi traído pelo seu próprio corpo. Uma falha física – talvez seja essa a melhor maneira de colocar a questão. Pelo menos foi assim que tudo começou.
Na terça-feira Joaquim acordou às 3 da manhã e não conseguiu dormir mais. Nessa altura sentiu-se profundamente acordado, se assim o podemos dizer, como se tivesse dormido tudo o que desejasse e ainda mais. De olhos abertos no escuro não sabia, contudo, o que fazer. Ana, a sua mulher, dormia profundamente a seu lado, pelo que considerou pouco adequado perturbar-lhe o sono para fazerem amor.
Depois de confirmar por diversas vezes as horas, levantou-se e foi à cozinha beber água. Não quis deitar-se novamente, por isso decidiu adiantar as suas 3 séries de 10 flexões de braços que fazia diariamente. Sentiu-se estranho, porque não as fazia à hora habitual, e talvez por causa disso interrompeu a terceira série a meio. Não conseguiu continuar, o que lhe causou uma agonia ainda maior. Começou então a pensar nisso e ao mesmo tempo naquilo que haveria de fazer até serem horas de se arranjar para ir para o trabalho. Depois em como se haveria de sentir cansado durante o dia, pois não descansara nada à noite. E com tudo isto ficava de fato cada vez mais cansado, mas não ao ponto de ficar com sono e dormir. Foi então de novo para a cama e fez amor com Ana que estranhou a hora pouco habitual.
O dia foi difícil. Porém, foi apenas o primeiro de muitos. Pois que desde esse fatídico dia, Joaquim não conseguiu dormir mais. Pelo menos não um sono descansado. Sempre que por momentos fechava os olhos começava a sonhar. Mas os sonhos não eram de todo distinguíveis, na sua natureza, do seu estado insone – tal como quando estava acordado, os pensamentos encadeavam-se sem descanso. Sentia-se preocupado, como se tivesse um assunto por resolver. Contudo não conseguia perceber qual.
Começou por esconder as suas insónias dos outros, pois não as conseguia justificar. Ficava deitado na sua cama, de olhos fechados, mas sem dormir. As noites eram longuíssimas. Quando confidenciou à mulher e aos colegas este seu estado, causou entre todos uma certa estranheza.
Começava a deixar de pensar de forma lógica. Estava, é claro, muito cansado; cada vez mais cansado. Outra coisa não seria de esperar.
Havia já uma semana que não dormia. As olheiras estavam agora bem marcadas, razão pela qual usava frequentemente óculos escuros. A roupa já não tinha o mesmo alinho. Eram ainda muito subtis estas alterações, mas por todos claramente notadas, ainda que por vezes apenas como um desconforto difícil de identificar. A barba não estava impecavelmente aparada. O cabelo não estava perfeitamente penteado e a gravata ligeiramente torta e frouxa. Noutra pessoa, estes pequenos desalinhos não seriam sequer notados, mas em Joaquim eram.
O seu comportamento e discurso também mudaram. Por vezes hesitava, arrastava a voz. O seu olhar perdia-se por segundos nas folhas que o vento de outono libertava das árvores do lado de fora da janela. Outras vezes, enquanto falavam com alguém, fixava um ponto ligeiramente acima do ombro do seu interlocutor, como se observasse algo que escapava ou espreitava, causando a este um estranho incómodo.
Mas o pior estava por acontecer. Durante o almoço sentiu uma súbita náusea e não conseguiu terminar a sua refeição preferida – ele que a tomava meticulosamente, sempre à mesma hora, no mesmo restaurante, e até que o prato ficasse impecavelmente limpo. De tal forma se sentiu acometido por aquele mal-estar, que se levantou de imediato e saiu do restaurante sem pagar.
Assim que chegou à rua respirou fundo. O que se passava consigo, perguntou. Algo lhe fazia pressentir que este não seria um estado temporário, mas sim algo permanente. Este raciocínio, apesar de pouco lógico, estava de acordo com tudo o que experienciara na última semana e sentiu-se de certa forma reconfortado por isso.
Consultou um médico, mas, tal como antevia, este nada tinha para lhe dizer.
Dirigiu-se de seguida a um psicólogo. Este disse-lhe, cuidadosamente, que talvez tivesse desperdiçado a sua vida, sendo essa a razão do seu incómodo. Esta condição – disse-lhe – era de fato muito mais comum do que se pensava, não sendo razão para desespero. Bastava seguir os seus sonhos, resolver os problemas que o atormentavam e tudo voltaria ao normal. Iria sentir-se aliás muito melhor do que anteriormente. Toda esta conversa era por demais surpreendente para Joaquim. Seria este psicólogo louco!? Como assim desperdiçar a vida? A sua vida era perfeita. Toda a gente o invejava – estava certo disso.
Saiu lentamente do consultório, pensando de tal forma fixamente no que acabara de ouvir, que quase não conseguia mexer os pés. Arrastava-os como um velho.
Durante mais uma semana foi incapaz de dormir ou comer. Sentia-se por vezes extremamente agitado e de seguida profundamente cansado; quase sempre nauseado, especialmente quando na presença de comida, que não conseguia de todo tolerar. Até mesmo a visão de outros a comer ser tornara excruciante.
Estava de tal modo esgotado que se julgava prestes a morrer. Os malares tornaram-se mais salientes, os olhos profundamente encovados, negros e doentes.
Só queria conseguir pensar racionalmente e tomar conta da sua vida. Fazer o que é suposto todas as pessoas fazerem e sentir-se contente por isso. É pura maldade fazerem-me isto, pensava.
Pediu dispensa do trabalho, pois era de todo impossível concentrar-se. A sua mulher começava agora a olhá-lo de soslaio e ninguém a poderia censurar. Joaquim perdera todo o desejo sexual; tinha um ar de louco e ninguém conseguia perceber a razão do seu comportamento. Estava certo de que injustamente o culpavam a ele – que nada podia fazer –, por tudo o que se passava…
O pior é que não sabia o que tinha de fazer para se sentir bem novamente. Se lhe dissessem – torna-te poeta que isso passa – tê-lo-ia feito. Mas não sabia de todo o que tinha de fazer. Pela primeira vez na sua vida, não sabia. Talvez fosse essa a origem do problema.
Tentou então pensar. Concentrar-se e pensar. O que deveria fazer? O que é que queria fazer?
Era demasiado difícil. Tudo estava perdido. O inferno é o inferno, porque não tem fim – e era assim que Joaquim se sentia, num inferno sem fim.
Poderia suicidar-se. Isso era uma opção. Era um propósito. Uma deliberação. Decidiu fazê-lo.
Comprou uma pistola e munições, foi para casa e sentou-se na poltrona do escritório. Carregou a arma. Respirava de forma acelerada. Colocou o cano na boca. Estava frio, gelado, e bateu-lhe involuntariamente nos dentes. A sua língua chegou-se à frente e sentiu o sabor a metal. Deixou-se então cair para trás, apoiando a nuca transpirada de encontro à poltrona de couro e descansou durante alguns minutos, tentando ganhar coragem. Quase que dormia, quando foi desperto pelo som familiar da porta da entrada que se abria. Logo de seguida, risadas. O que faria a Ana em casa a meio do dia. Pareceu-lhe reconhecer a outra voz, a de um homem, embora não o conseguisse identificar.
Levantou-se lentamente e aproximou-se da porta do escritório que estava encostada. Os risos continuavam, cada vez mais animados. Espreitou.
Um homem, baixo e careca, agarrava e despia Ana, que se afogueava em torno do seu curto pescoço. Era o cabrão do psicólogo.
Armou a pistola e apontou – não falharia.
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