Morrer aos 30
O meu aniversário é para a semana. Não sei se estarei presente. Não me parece possível. Morrer aos 30, sem aviso, e ainda sem ter vivido: eis a verdadeira e aparente impossibilidade. Senti raiva, mas agora sinto apenas um grande embaraço. Um lapso que me corrói e faz mergulhar a cara na almofada, já amarelada, tresandando a mim; que me faz fechar os olhos por vergonha de ver o mundo: a minha vergonha do medo e a vergonha da vergonha: um embaraço.
Os órgãos estragados, avariados, perros, empenados, empurrando-se no meu ventre inchado pela sua inércia; um mal-estar constante e agora também as dores de cabeça, quase sem descanso, e a febre que não pode ser bom prenúncio...
Todos os beijos que eu não dei. Todas as mulheres e homens que eu não amei.
Os livros que não li e outros que li, porque hoje isto, amanhã aquilo, este ano tenho que.
As mãos que eu não toquei e as palavras que nunca disse, porque ela sabe e ele depois pensa que.
E os filhos que não hei-de deixar, porque, primeiro este ano isto e depois aquilo, temos que ter cuidado, e só então é que podemos, e agora:
não;
porque não quero;
recuso deixar-te um escolho, uma razão para morreres em mim, para que só penses no passado como eu antes só pensei no futuro.
Os vómitos de dor, apalpando de um esticão todo o tubo digestivo: e apenas um líquido amarelado, fétido, que me dá nojo; por vezes o sangue.
Percebo que não tardará.
Percebo que não tardará.
Arrependo-me de todas as invejas, ganâncias e ninharias em que me adiei, em que deixei consumir - lentamente, com mil cuidados e em lume brando, o homem que eu quisera ser – e a morte, sempre, e a cada momento, a puxar-nos para baixo.
Vivendo a vida de outros, deixei a minha por estrear.
Trabalhando. Trabalhando. Trabalhando.
Produzindo, em toda a minha vida, nada mais do que uma mescla de coisas úteis!, que proporcionavam a outros como eu uma razão para continuarem, também eles, a produzir outras tantas utilidades! E nada de inútil! Em todos estes 30 anos, nada de inútil! Nada que se justificasse apenas pela sua beleza. Em todos estes 30 anos, nada de belo!
E o mal comendo-me o sangue. Sinto-o subir pelo pescoço. Vai levar-me, não há dúvida.
Nada de belo. Só escuridão. Vivi na escuridão. No medo. O mesmo medo irresistível que me acompanha desde a infância. Que me visitava no meu quarto, antes de adormecer, na penumbra que se instalava, nos vultos que teimava distinguir nas paredes, nos móveis, e nos sons que me suspendiam a respiração, me isolavam o bater do coração na tentativa de os confirmar, de racionalizar a sua origem. O medo que então me impedia de dormir e que depois me impediu de viver.
Sinto o embaraço da criança que descobre ser vítima de um equívoco impossível: a saía que puxava insistentemente, distraída, não é a da sua mãe, mas sim de uma outra senhora que agora a olha com uma ternura infértil. Olhou para o lado. Distraiu-se. Distrai-me. E agora é uma outra vida que não a minha, que me olha enternecida; e o embaraço: este em que me ledes.
O meu embaraço é a desilusão que os outros reconhecem em mim; é a impossibilidade de evitá-lo.
Pressinto nos outros todas as palavras que se recusam a aceitar.
Embalado por uma fria balada deixei-me adormecer.
O hábito. O medo. Sobretudo o medo.
Todos os livros que não li. Todos os livros que não escrevi. Que não escrevi. Todas as palavras, todas as frases que me destruíram por não as dizer, por não as escrever. E por isso, todas as pessoas que não toquei.
Todas as palavras que
As palavras, as fotografias, os quadros, as esculturas
que não vi
Nunca uma fotografia que Uma frase talvez, que
Fecho os olhos! Fecho-os até doer!, mas ainda assim me vejo, os vejo: amarelados, engelhados, velhos: como tâmaras podres, liquefazendo-se.
O embaraço de não ter sido, de não ser, de não o conseguir ou desejar
Todos os livros. Que não li. Que não escrevi. Que não fui capaz.
Que não sei...
Fim
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