Vermes

Deitado na cama, de olhos abertos, penso ininterruptamente; quero parar, mas não consigo; um qualquer desequilíbrio empurra-me em frente, sempre em frente, num eterno devir, sem propósito ou descanso. Quero parar, adormecer, deixar escapar a mente por entre os dedos e tocar o vazio, a imobilidade. Para quando o repouso?

Alguém bate à porta. Agarro os lençóis fétidos por entre os dedos e estremeço. Abro os olhos por um momento e aperto a almofada de encontro ao corpo. Fico quieto – para que não me oiçam.

Um cheiro horrível, que tudo invade e sufoca, um cheiro bafiento e espesso, de putrefação, percorre toda a casa. Espalhados pelo chão, pedaços de pão duro e bolorento, confundem-se, felpudos, com novelos de pó e cabelos. Por cima da mobília, fruta apodrecida, liquefazendo-se, cintila, aparentemente intacta; ou remexe-se, consumida por vermes. O lixo acumula-se pelos cantos. Ossos, agitados por formigas, sorriem, brancos. Centopeias esgueiram-se por entre o soalho. No lava-loiça, onde se acumulam pratos por lavar, baratas passeiam por entre restos de comida.

Passo as mãos pelo cabelo oleoso, sujo. Agarro a barba e coço-me. Tenho muita comichão.

Levanto-me lentamente, para que a cama não ranja. Avanço, pé ante pé, com dificuldade, pois também os músculos, como a mente, parecem ter cedido à inatividade.  Habituados ao repouso, atrofiam, pedindo sempre mais descanso, mesmo quando nada fazem. A solidão, o isolamento, também elas se alimentam e crescem. Novelos de cabelo, uma doce lanugem, levanta-se à minha passagem, prende-se nas minhas meias esburacadas, no meu eterno pijama, amarelado.

Cheiro-me. Passo a mão pelo sexo, pela barba e levo-a ao nariz. O meu cheiro deve ser odioso, mas agora dificilmente me separarei dele. Cheiro a suor, a urina, a sémen desperdiçado. Cheiro a azedo, a vinho podre.

Aproximo-me lentamente da porta. Oiço ainda passos do lado de fora. Afinal, quem quer que seja, ainda não desistiu. Assustado, mas agora impelido por uma curiosidade irresistível, chego-me à porta. Rodo lentamente a proteção metálica do óculo e, sustendo a respiração, espreito. Está muito calor e transpiro abundantemente. O pijama cola-se ao corpo. Entre mim e o exterior, entre mim e outro ser humano, apenas um aglomerado de madeira. A luz fere-me os olhos habituados à penumbra. Tenho, durante o dia, os estores sempre descidos e mesmo há noite prefiro mover-me no escuro. Conheço o pequeno apartamento demasiado bem.

Do lado de fora está uma rapariga. Uma jovem rapariga. Não a conheço. Está desconfiada. Talvez tenha ouvido os meus passos ou a minha respiração, sentido o meu cheiro. Torna a bater à porta. Vejo-lhe os olhos raiados de sangue e recuo assustado.

Corro apressadamente e escondo-me por detrás do sofá da sala. A rapariga acaba por desistir.

A televisão está ligada. A televisão está sempre ligada. O seu fluxo constante hipnotiza-me. Percorro circularmente todos os canais sem ver nenhum. Nada me interessa, mas não a consigo desligar.

Masturbo-me regularmente – cinco, seis vezes por dia –, mas não tiro disso qualquer prazer. A libido toma conta de meu cérebro desocupado e disfuncional como uma asma incontrolável. Não consigo evitar a masturbação. É como um reflexo. Apesar disso, sinto-me culpado.

Vivo assim, não porque o deseje, mas porque não o consigo evitar. Deste contraditório, da sua perceção e plena consciência, nasce uma profunda vergonha. Porque sei que isto não é normal. Não é natural. As pessoas não se comportam assim, vivendo fechadas no escuro, por entre o lixo, o pó, os cabelos, a imundice, não tomando banho, urinando-se, masturbando-se, com as faces rubras, de culpado, febris como um animal, um animal morto, esperando os corvos, os abutres e os vermes que o hão-de comer.

Não conseguirei evitar os vermes; aguardam com infinita paciência. Por vezes, sinto-os no meu interior… Penso, em paranoia, que me entraram pela boca, pelos ouvidos, pelo pénis, ou até pelas unhas dos pés, enquanto dormia, e que me consomem já, multiplicando-se no meu interior. Entro então em pânico. Penso em limpar a casa, em acabar de vez com toda esta miséria podre, mas adio-o sempre, prometendo a mim próprio e depois condescendendo com a minha falta de vontade. Sinto-me consumido pelo mundo, pela sua crescente entropia e decomposição da vontade.

Oiço a vida lá fora. As janelas estão há muito fechadas, tornando o ar viciado, mas ainda assim oiço os carros e as pessoas passando lá em baixo, na rua. Estranhamente, não me assustam; não me repugnam sequer. Por vezes, abro uma fresta da janela do quarto, que dá para a rua principal, e fico à escuta. Com uma atenção extrema, tento destrinçar as conversas de quem passa. Fragmentos apenas. Normalmente não espreito, não tenho a tentação de as ver. Tenho que imaginá-las. Assim como as suas conversas, que são, na maior parte dos casos, impossíveis de compreender, mas que suponho e reconstruo. Imagino, pelas vozes, belas raparigas e, nos seus agudos, gritos de prazer.

Ocupo-me também com os vizinhos. Tento escutar todos os ruídos. A partir do quarto, da cozinha, da casa de banho. O choro das crianças. Os seus passos. Os seus suspiros. Os seus grunhidos de prazer. As suas vozes, abafadas pelas finas paredes, constroem ininteligíveis dramas na minha mente.

Ainda que considere perverso, moralmente errado e infecundo, sorver assim a vida de outras pessoas, não o consigo evitar. O meu comportamento é apenas desculpável pelas intenções, que não são más, que não são nenhumas. Não quero, de maneira nenhuma, interferir nas suas vidas, prejudicá-las seja de que forma for.  Quero apenas… desejo apenas… ouvi-las.


Penso na rapariga desta manhã. Na mesma medida em que a relembro, torno-a familiar. Julgo conhecê-la. Porque não fui capaz de abrir-lhe a porta? Porquê? O que é que me impede de sair de casa e deixar este conforto podre. Decidir-me – tomar um banho, fazer a barba, aspirar o chão, limpar o pó, vazar o lixo, limpar a fruteira, o frigorífico, a bancada da cozinha, o lava-loiças infecto, cheio de pratos e copos sujos, de abrir as janelas!, deixar entrar o sol, o vento, o ar puro, e então o vermes recuariam assustados pelo movimento, pela simples vontade. Mas nem sequer acredito nestes planos ou na minha intenção de os cumprir; sei já que é impossível, o medo é demasiado grande, paralisa-me. Penso que é isso: o medo, nada mais do que medo. Um medo como uma inércia que atrofia, que se alimenta de si própria e não para de aumentar.

Olho para o canto do quarto, junto ao teto. Uma aranha tece a sua teia. Desce, balançando-se no seu cintilante fio e pousa em cima da mesa-de-cabeceira. Olho-a, incapaz de me mexer. Se ela se dirigisse para mim; se tentasse subir pela minha mão e passear-se pelos meus lábios, pelos meus olhos, não seria capaz de reagir. Faria, se quisesse, uma teia por entre os meus dentes, envolvendo a minha língua sem propósito, e eu não oporia a menor resistência! Não porque o queira, porque o ache natural ou normal, mas porque sou incapaz de resistir. Sou incapaz de a varrer do meu corpo com uma mera sacudidela. É talvez mais confortável sentir-me subjugado.

Em cima da cómoda estão restos de comida. Uma lata de refrigerante, um pedaço de pão verde, granítico, e um pêssego meio comido. Verte do pêssego um líquido transparente, melado, que escorre pela frente do móvel. No chão, um prato com restos de comida: batatas fritas e um resto de costeleta.

Os vermes tomam conta de tudo. Aguçando os olhos na escuridão, vejo, subitamente, o pêssego mover-se; por baixo da sua pele balofa, algo se mexe. E também os restos de carne, fecundados por moscas, se agitam.

O verme come o seu caminho. A aranha tece a sua teia. Estamos no estômago do mundo e seremos digeridos.

Distraído, com medo, esperando, arrastando-me nos meus próprios dejetos, incapaz de opor força por um desejo, submergido pela inércia, sou menos, muito menos, infinitamente menos, que um animal.

Batem novamente à porta. Sei que não vou conseguir abri-la. Não penso sequer nisso. Contudo, sinto-me agitado. Quanto tempo mais vai isto durar? Terá este martírio um fim? Há sempre, eternamente, alguém a bater à porta, alguém interessado em mim. Batem à porta, chamam-me, para que nunca me esqueça… para que nunca me esqueça da porta.

Um golpe de asa. Apenas uma palavra e mudaria de vida. Se gritasse agora: “Socorro! Alguém me acuda! Ajudem-me!”. Com certeza que me ouviriam e viriam resgatar. Talvez seja a rapariga que bate à porta – estou certo de que é a rapariga. Talvez, se eu abrisse a porta, nos apaixonássemos. Talvez me salvasse pelo seu amor.

Sou incapaz de suicidar-me. Espero apenas os vermes.

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