O POÇO
Empurravam-nos simplesmente lá para baixo. As paredes, embora à primeira vista dessem a ilusão de poderem ser escaladas, eram demasiado compactas e uniformes para que conseguissem fixar as mãos ou os pés. O poço tinha uma construção peculiar, em forma de garrafa, mais larga em baixo e afunilando numa espécie de gargalo, por onde caiam inicialmente. O propósito desta construção era intrigante para os prisioneiros, mas para alguém que, depois de se deitar na sua cama para uma doce noite de sono, acordava agora completamente nu, no fundo do poço escuro, esse era apenas um detalhe. A primeira coisa que inconscientemente lamentavam era não se terem agarrado com todas as suas forças enquanto caiam pelo gargalo. Estavam na maioria das vezes adormecidos, ou desorientados, com a sensação de estarem a despertar de um pesadelo. Só acordavam verdadeiramente quando caiam na água fria. Os outros ocupantes, se os havia, desviavam-se para junto das paredes para não serem atingidos pelo corpo que caia. Cegos pela luz da abertura, que anunciava nova queda, gritavam-lhes. E eram esses gritos que produziam nos novos reclusos a sensação de estarem a acordar de um pesadelo.
Primeiro, tentavam fugir. Por todos os meios, de todas as formas, sozinhos ou entreajudando-se. Cravavam as unhas nas paredes até ficarem em sangue. Gritavam. Mediam o diâmetro da circunferência do poço, constatando a sua insuficiência física; se fossem apenas um pouco mais altos, ou os seus membros fossem um pouco mais longos, conseguiriam – mas esses centímetros em falta eram insuperáveis. Lá em cima, por onde tinham caído, seria quase fácil trepar, costas e pés de encontro às paredes, mas não havia forma de lá retornar – nem de reverter a falta de atenção que acompanhou a sua queda. Mergulhavam à procura de uma saída subaquática, mas tudo o que descobriam eram úmeros e caveiras, o que os enchia, por fim, de um profundo terror. No início não havia nenhuma ameaça clara, apenas uma prisão obscura e humilhante, que não conseguiam compreender, mas esses ossos declaravam agora a impossibilidade da fuga; anunciavam o seu último destino; tornavam a ameaça real.
A água do poço subia e descia de forma irregular, comandado por forças que não era possível descortinar. Por vezes tinham que nadar, enquanto noutras, expostos na sua nudez, chapinhavam num charco macabro, que os levava de volta às lágrimas e ao desespero.
Mas tudo aquilo era apenas uma diversão de ricos. Na meia abóbada do poço, escondidos por detrás de vidros escuros, executivos de topo assistiam ao espetáculo na companhia das suas jovens esposas. Pagavam avultadas somas de dinheiro, deixando livres os seus lugares cativos na real ópera – tratava-se aqui de algo bem mais excitante. Os senhores executivos comentavam entre si, que na sequência de tais espetáculos, as suas jovens esposas lhes proporcionavam inesquecíveis noites de amor. “Fodiam como se não houvesse amanhã.”
Os espectadores estavam invisíveis, deitados sobre divãs de couro, espreitando pelas janelas escurecidas. Assistiam à chegada da fome entre os prisioneiros com um copo de champanhe na mão, sorvendo ostras cruas ou saboreando ovas de esturjão na ponta de uma minúscula colher de prata. As senhoras cruzavam e descruzavam as pernas num crescente de excitação, acariciando o pénis dos companheiros sobre as calças.
A presença dos espectadores só era revelada na sequência de algum acontecimento dramático, tendo esta revelação um propósito bem determinado e que fazia parte do próprio espetáculo.
A fome transformava-os em animais. Os olhos dos prisioneiros eram invadidos por um brilho estranho, salivante, quase sobrenatural. Metia medo. Por vezes ocorriam violações. Isolados do mundo, famintos, quase alucinando, forçavam as fêmeas a repetidas cópulas, que quase os conduziam a um estado de total exaustão. Por fim, matavam-nas e comiam-nas. O cadáver era mantido à tona da água, sendo a carne arrancada com os dentes diretamente do corpo. Tarefa que revelava a total desadequação da dentição humana para a tarefa. Depois de satisfeito o primeiro ímpeto e apaziguada a primeira fome (que era sucedida por fortes dores de estômago), começava a verdadeira tortura. A contínua deglutição do cadáver, que se assemelhava agora a um luxo, impregnava-os de culpa. Era nesse momento que a presença dos espetadores era revelada e os prisioneiros percebiam que toda a sua conduta tinha sido observada. Jovens loiras em vestidos justos, acompanhados por homens já grisalhos, com fatos impecáveis, olhavam lá de cima, rindo. As joias das mulheres balançavam douradamente nas suas orelhas e pescoço, enquanto os anéis martelavam os vidros para chamar a atenção. Os prisioneiros olhavam estupefactos, nus, cobertos de uma vergonha que tudo ultrapassava. Desejavam morrer, mas depois enchiam-se também de raiva, e continuavam a querer sobreviver. Que belo espetáculo.
O encenador ensaiava diferentes combinações, alterando o número, sequência e características dos prisioneiros. Dando origem a um espetáculo sempre renovado. Quando, por exemplo, um novo prisioneiro era introduzido no poço num momento em que a fome era já insuportável, era frequente que este fosse morto pelo restante grupo, que já tinha formado uma aliança. Mas caso conseguisse resistir, ferindo ou matando um dos outros, a aliança era desfeita e para surpresa e horror do recém-chegado, o seu opositor era devorado perante os seus olhos.
Apostas eram feitas entre a assistência. O que tornava o espetáculo ainda mais excitante. Homens e mulheres perdiam o controle, delapidando a sua fortuna em meia dúzia de noites. Ninguém se perguntava porque razão aquelas pessoas tinham sido escolhidas para cair no poço. Ou porque razão aquele espetáculo existia. O seu deleite era tal, que anulava qualquer necessidade de explicação. Um total secretismo era obviamente exigido entre os convivas, que usavam, eles próprios, delicadas máscaras, e que estavam completamente proibidos de mencionar, seja em que circunstância for a existência do poço. À mínima suspeita infração, poderiam acordar no fundo do poço. Todos sabiam isto.
Comentários
Enviar um comentário