O QUINTO FILHO, DORIS LESSING (Tradução de Cristina Rodriguez)
A catalogação de um livro dentro de um determinado género é sempre redutora. No entanto, talvez seja útil, neste caso, como meio de compreensão do mesmo. Numa entrevista em 1988 ao New York Times, a autora classifica-o como uma ‘uma história de terror (ou horror) clássica’. As histórias de horror são, muitas vezes, formas de ventilar medos profundos, ou recalcamentos de ordem psicológica, materializando-os na forma de um demónio, monstro, fantasma ou semelhantes. Neste caso, o horror é concretizado na invasão, primeiro de um corpo e depois de um grupo, por uma criatura de forma quase humana, mas definitivamente diferente, de uma subespécie ancestral, que reemerge por acidente. Ben, o quinto filho, é classificado como um monstro, projeção de um passado recalcado, “não-civilizado”, que choca com a família perfeita, “civilizada”. A certo ponto, Dorothy, mãe de Harriet e avó de Ben, diz: “ele pode ser normal pelo que é, mas não é normal pelo que somos”. O que torna o livro notável é a ambiguidade criada entre a monstruosidade e agressividade de Ben e em contrapartida, quase em espelho, a agressão da família em relação a ele, internando-o numa instituição, para que, a todo o custo, fosse esquecido, obliterado e morresse.
Este romance curto começa no próprio título, que anuncia um acontecimento futuro (o quinto filho), previsivelmente disruptivo, pois essa é a natureza das coisas: a felicidade e perfeição não se podem manter para sempre. Durante a primeira parte do romance há um crescendo de tensão, induzido por essa felicidade familiar perfeita, numa marcha acelerada na direção do quinto filho. É de notar que a persecução dessa felicidade é feita a todo o custo – ainda que sem meios para atingir o ideal que pretendem, David e Harriet avançam, cativando o dinheiro do pai e o trabalho da mãe. O ponto de inflexão na história dá-se no início da gravidez de Harriet, em que esta percebe que algo de diferente se passa, pela vitalidade e agressividade do feto, que parece querer rasgar o útero. Mas, talvez ainda mais significativo, é o episódio em que David, pouco antes do nascimento de Ben, conta aos quatro filhos uma história que, a certo ponto, se torna demasiado assustadora:
Uma menina e o seu irmão passeiam numa floresta maravilhosa, bebem em lagos de sumo de laranja. Mas a menina perde-se do seu irmão. Sozinha vagueia pela floresta sem encontrar o caminho para casa. Fica com sede e procura um lago. Este já não era de sumo de laranja, mas de água pura e límpida, que sabia a pedras e plantas. Começa a ficar escuro. A menina debruça-se sobre o lago à procura de algum peixe que lhe indicasse o caminho. Em vez disso, vê no lago o rosto de uma outra menina, que nunca vira antes. Essa menina sorria, mas o seu sorriso era maléfico, pouco amigável, e parecia que a todo o momento poderia puxá-la para o fundo do lago.
Há nesta
história um simbolismo que poderá encontra ressonâncias das teorias de Jung e
Freud. Sozinha, com medo, debruçando-se sobre um lago, a menina vê um reflexo
ou sombra de si que nunca vira antes. Há, no homem, dois mecanismos ou
estratégias de sobrevivência fundamentais: a destruição do outro por via da agressão,
o ódio; e o instinto de proteção dos que lhe estão próximos, a sedução como via
de obter proteção, e a multiplicação, através da procriação. Os dois processos
estão interligados: podemos dizer que a agressão satisfaz um amor próprio, da
mesma forma que o instinto de proteção do grupo (ou família) pressupõe uma
agressão a tudo o que lhe seja externo. A própria noção de grupo pressupõe uma distinção
clara entre ‘nós’ e ‘eles’. Sendo que a identificação de um inimigo externo ao
grupo serve para estabelecer relações de poder dentro do mesmo. Contudo, dentro
de um grupo, para que a convivência e entreajuda sejam possíveis, o instinto de
agressão está fortemente reprimido. A face desconhecida que a menina encontra
no lago, cuja água sabe a pedras e plantas, é essa face oculta e quase sempre
reprimida em sociedade. Ou talvez uma premonição do filho que estava para
chegar, mas que simboliza ele próprio essa face oculta.
O nascimento de Ben veio instalar um elemento estranho no seio da família. Um elemento agressivo, não civilizado, ancestral, que acaba por a destruir e desagregar. Não é um deles. Os seus modos são inadequados e ameaçadores. Morde o peito da mãe ao amamentar. Come carne crua. Tem uma força fora do normal. Suspeita-se que tenha matado o animal de estimação. Os irmãos têm medo e fecham a porta do quanto à noite. Civilizadamente, a família decide resolver o problema: Ben é levado por uma carrinha preta para parte incerta. Este é, não só, um ato de agressão brutal, ainda que perante o “monstro”, mas algo profundamente perverso, no sentido em que não parte de um instinto animal, mas de uma ação pensada e premeditada, que ultrapassa todos os travões psicológicos à sua concretização, movido pela promessa de reestabelecer a ordem – a civilização.
Esta agressão satisfaz a família que, sem o elemento disruptivo, volta, por momentos, a ser feliz, ignorando a infelicidade de Ben. O segundo ponto de viragem no romance ocorre quando Harriet, indo contra a vontade do marido, decide visitar David. Apesar de nunca ter sentido verdadeiro amor ou ligação para com Ben, é lhe impossível contornar o instinto maternal e ignorar o seu destino. Se antes já era olhada como culpada por ter trazido ao mundo aquela criatura, agora, com o seu regresso a casa, é, tanto quanto Ben, excluída do círculo familiar. Os filhos dispersam-se por colégios internos e casa de familiares, o marido torna-se ainda mais ausente.
A terceira
inflexão é a curiosa integração de Ben entre o delinquentes e marginais, onde é
acolhido e até visto como um líder – o que não pode deixar de ser visto com alguma
ironia. O final do livro não oferece nenhuma garantia de tranquilidade. A ordem
não é reposta, o horror espreita, Ben sairá de casa para o mundo.
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