LAGARTOS
Todos os anos, umas semanas antes do Natal, faziam-se bolos secos e broas em casa da minha mãe. A massa era misturada em um ou dois alguidares de barro enormes. Tratava-se de um processo primeiro alquímico e depois físico. A farinha, a manteiga, o açúcar e os ovos eram mesclados e depois sovados até se ligarem e adquirirem uma consistência elástica, de cor parda, semelhante a um estômago insuflado de um equino – este é um processo físico, que requer força. Ficava depois por algum tempo em repouso, mas perfeitamente viva. A farinha e o açúcar, antes completamente inanimados, ganhavam vida. Eu assistia a todo este processo com uma expressão de maravilha atenta, entrando e saindo da cozinha, pedindo também para meter as mãos na massa e a calcar, para que também a minha força pudesse moldar aquele pequeno mundo.
Depois, era disposta uma toalha velha em cima da mesa da cozinha. As mulheres polvilhavam-na com farinha, que dispersavam com desembaraço. Batiam as palmas para sacudir o excesso de farinha, pegavam na massa como num cachorro pelo cachaço, e passavam-na para a mesa onde era estendida pelo proverbial rolo. O aglomerado era então cortado com uma faca em pedaços, para que pudesse ser moldada em pequenos biscoitos. O forno era ligado e agora muitas mãos concorriam a este processo exaustivo: a massa rolava na palma das mãos formando pequenos seixos polidos e depois achatados. ‘Estás a fazê-los muito grandes’, ‘Estás a fazê-los muitos pequenos’ diziam-me. Mede-se o mundo na palma das mãos. Para os decorar, havia um conjunto de utensílios, guardados numa caixa durante todo o ano, sempre os mesmos, e que tinham apenas esta função. Era um conjunto invulgar de peças que agora, na minha memória, parecem saídas de um conto de fadas. Havia um dedal, um miolo de um carrinho de linhas com o topo em estrela, e uma roda dentada que teria sido outrora parte de um relógio ou brinquedo destruído. Era com estes instrumentos que imprimíamos semicírculos e costuras nos bolos. Não haveria nenhum igual a outro. Os bolos eram então pincelados com gema de ovo e iam para o forno em tabuleiros, um ou dois de cada vez. Este processo demorava uma tarde inteira, tal era a quantidade produzida.
Não sei se para dispersar o tédio ou por uma qualquer superstição antiga que desconhecia, quando restava já pouca massa e se queria acabar com aquilo, eram feitos lagartos. Cada um fazia um animal, tipicamente um réptil, tipicamente lagartos. Tinham um corpo fusiforme, com uma cabeça, um rabo comprido, quatro patinhas coladas, olhos e o dorso costurado pelas rodas dentadas, dando-lhes um aspeto de crocodilo, mais do que lagartixa. Estes lagartos pareciam-me, e parecem-me ainda, uma espécie de talismãs que protegiam o resto dos bem-comportados bolinhos da corrupção.
Depois de cozidos no forno, os bolos eram acomodados na dispensa em duas grandes caixas de cartão – estamos a falar de uma quantidade pornográfica de bolos – e muito bem tapados e aconchegados por várias mantas, para que não ficassem duros e durassem várias semanas.
Ao serão, sobretudo ao serão, durante as semanas que se seguiam, os bolos eram paulatinamente consumidos. A minha mãe, sempre que me via sair dispensa, perguntava-me: ‘Tapaste bem os bolos?’. Talvez estes bolos me fossem mais queridos porque também as minhas mãos os haviam moldado. Os mais saborosos eram evidentemente os lagartos. Talvez porque parecesse uma travessura comê-los.
O que recordo da minha infância são sobretudo estes momentos. Não os abraços, os beijos ou as palavras, mas a forma como cuidavam de mim; o tempo que dedicavam a fazer coisas para me agradar; o tempo que estavam comigo, mas também o tempo que me deixavam sozinho. E não tenho qualquer dúvida de que fui e sou profundamente amado e de que os amo de igual modo. Pelo cuidado que me demonstravam nas coisas mais comezinhas e não por grandes declarações ou demonstrações físicas.
É curioso que tenha começado por dizer a ‘casa da minha mãe’, apesar de também lá viverem o meu pai, o meu irmão e os meus avós maternos. Mas são as mães que fazem as casas. Quando era criança sempre gostei de estar junto dos adultos. De ouvir as suas conversas, de ver as coisas que faziam – tanto dos homens, como das mulheres. Mas o meu universo é sobretudo feminino: é do cuidado abnegado das mulheres que me lembro. Da minha mãe, da minha avó. E é esse cuidado que agora reproduzo, porque não podemos ser muito diferentes daqueles que nos criam. Talvez não um cuidado abnegado, não sou assim tão bom, nem acho que alguém precise de o ser. Mas fazer coisas pelos outros, oferecer-lhes um pedaço do meu tempo e trabalho, é talvez o meu modo de compensar tudo o resto em que sou insuficiente.
Agora que tenho três filhas vejo-me invariavelmente rodeado de mulheres. E continuo a fazer bolos com as minhas filhas. E continuo a fazer um lagarto com o resto da massa. Coisa que as diverte: o pai, tão sorumbático, parece subitamente uma criança.
Também gosto que elas façam desenhos para oferecer à avó, a mim ou aos tios pelos seus aniversários. Ainda que isso resulte numa casa que parece uma sala de ATL.
O trabalho está atualmente contaminado pelo de
dinheiro. Trabalhamos maioritariamente por dinheiro e o dinheiro é sujo, o que
infecta a ideia de trabalho. É preciso separar as duas coisas. Porque o
trabalho é um ato de amor. Tornemos as coisas mais românticas. Pensemos, por
exemplo, num livro. Pensem nas centenas ou milhares de horas de trabalho que um
autor demorou a escrevê-lo. Não só o autor, mas possivelmente o revisor, o
editor e todas as pessoas que pensaram nele. E também quem o paginou e quem o
imprimiu e quem o transportou e quem o vendeu. Mas não pensemos em dinheiro. E agora
o livro está nas tuas mãos e podes lê-lo; pode fazer-te companhia ou podes
aprender alguma coisa com ele – dá-te prazer. O trabalho também é amor. Fazer
alguma coisa para os outros e pelos outros. E podemos da mesma forma pensar em
algo mais corriqueiro: o senhor que te vem arranjar o esquentador ou a senhora
que vende hortaliça – dão-te um pedaço do seu tempo, que mais te poderiam dar?
Não há nada mais precioso do que o tempo: está contado, indeterminado e o seu
curso é irreversível. Uma dádiva de tempo não deve ser desprezada. Para dizer ‘amo-te’
não são precisos mais do que dois segundos. Para fazer o jantar, meia-hora.
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