FILHO DA MÃE, HUGO GONÇALVES
Quando o meu pai morreu fechei-me no meio quarto durante três dias e não falei com ninguém. A memória desses acontecimentos parece-me cada vez mais difusa, obliterada e incoerente até, o que é aflitivo, embora explicável. Lembro-me de ter chegado tarde a cada da faculdade e de me terem dado a notícia (seria a da morte ou do internamento?). Tomou-me de surpresa. Fui para o meu quarto e não quis falar com ninguém. Lembro-me apenas que querer ficar sozinho. No entanto, lembro-me também de estar na entrada do Hospital São José em Lisboa, com o meu irmão e a minha mãe, e de nos terem dado a mesma notícia. A reação da minha mãe é a ainda a mais vívida imagem do desespero que conservo: gritou e atirou-se de imediato ao chão, os sapatos saltaram-lhe dos pés enquanto esperneava e eu e o meu irmão tentávamos levantá-la… Por mais que tente, não consigo reconstituir esses dias e descrever o curso dos acontecimentos de forma coerente. E por mais que isto me incomode, perguntar ao meu irmão ou à minha mãe está totalmente fora de questão. Seria o mesmo que bafejar sobre uma ferida aberta.
Foi uma tragédia em dois atos. Quando eu era ainda criança (teria talvez 8 ou 9 anos) o meu pai teve um AVC que o transformou. Também aqui a memória é uma cabra traiçoeira. Quase não me lembro do meu pai antes desse acontecimento. As minhas únicas recordações são de lhe oferecer envergonhadamente um trabalho que tinha feito na escola para o Dia do Pai; e uma recordação difusa, possivelmente proveniente de um relato indireto, de que saia sempre em cima da hora para o trabalho e fazia todo o caminho (2 kms) ladeira abaixo a correr. Mais nada. Depois disso, contudo, lembro-me claramente de o visitar no hospital de Vialonga, um hospital de retaguarda, onde esteve em recuperação durante vários meses. Lembro-me sobretudo de que em frente ao hospital havia um renque de amoreiras ao longo do passeio. Sempre que ia ao hospital trepava um muro e recolhia folhas de amoreira para os bichos-da-seda que guardava numa caixa de sapatos furada. Os bichos fizeram casulo, não me lembro de se terem transformado em borboletas, talvez tenham morrido. Mas a partir desse momento tenho muitas recordações do meu pai – antes quase nada. O meu pai recuperou significativamente, mas nunca mais terá sido o mesmo. Tinha mobilidade limitada na perna e braço direitos e, embora tenha conservado o tino, emocionava-se (ria e chorava) com uma facilidade inusitada.
Raramente falo da morte do meu pai. Não é algo que me atormente no dia a dia. Não me lembro disso. Nem sei em que dia morreu. Não o visito no cemitério. Mas está lá sempre, embora não seja visível, porque é uma falta, o mais próximo possível de uma amputação. Numa amputação por vezes também surgem dores fantasma. E as faltas só se tornam visíveis quando tecemos rendilhados em torno. Mas não é algo que se queira fazer. Não se fala sobre isso – pelo menos eu não falo e parece-me que não devo ser o único. Constituí em grande medida um segredo. Não queremos que se saiba. Teriam pena de nós, o que é terrível; ou ficariam embaraçados, porque na verdade não há nada que o possam fazer para o reparar, para me reparar. Na faculdade, por exemplo, poucos colegas meus saberiam do sucedido. Não o disse logo e foi um segredo que se eternizou.
O que me foi roubado é imenso. Nunca terei ninguém a quem pedir um conselho de pai ou uma ajuda. Terei outras pessoas com certeza, mas não um pai. Não me viu iniciar a carreira profissional. Não conheceu as minhas filhas. Nunca soube que corri maratonas. Nunca me viu homem – porque não se é homem aos 18 anos. E depois, pior do que tudo, é irremediabilidade de tudo o que não foi dito; é simplesmente irreparável, porque a outra parte partiu para sempre. É claro que tudo isto parece ser de um egocentrismo terrível. Eu, eu, eu – aquilo que me roubaram, como se eu fosse muito importante ou o mais importante. De facto, não é nenhuma tragédia – é a vida e haverá outras bem piores.
Só consigo imaginar uma coisa pior do que perder um pai ou mãe antes de tempo: perder um filho. Porque ninguém deveria ver um filho morrer; é nossa tarefa protegê-lo e teríamos necessariamente falhado. Conseguir imaginá-lo é em si um ato reflexo, próprio de quem consegue conceber uma pancada. Não acredito em Deus, o que é uma enorme desvantagem, mas que me livrem disso.
É destas e de muitas outras coisas que Hugo Gonçalves fala no seu livro ‘Filho da Mãe’. Há muito de partilhado no processo luto. Gostei do livro por ser a partilha de uma experiência pessoal – não por ser autobiográfico. Acho que quanto mais nos debruçamos sobre microcosmos pessoal, mais dos aproximamos do geral – não uma humanidade abstrata, mas fractal. O livro está escrito sem pretensiosismos, com uma linguagem escorreita, despertando sempre o interesse do leitor, apesar do tema por vezes pesado – o que é maior elogio do que parece.
Transcrevo a últimas palavras do livro:
Uma noite, em Nova Iorque, alguém me falou de um ditado judeu: «Deixa o teu filho ir o mais longe que puder, só então vai ao seu encontro e trá-lo para casa.»
Fui o mais longe que consegui, mas a minha mãe não foi buscar-me. E tardei décadas até procurar o caminho de volta para ir ao seu encontro.
Essa é uma viagem que se faz sozinho.
Quando, há trinta e dois anos, regressei a casa e fui procurar a minha mãe em cada quarto, comecei a esquecer a sua voz. Não tenho o casaco de peles, os desenhos do hospital ou as cassetes. Mas, porque somos aquilo que recordamos, nesse dia passei a ser também a sua voz, a sua memória, essa coisa humana – essa coisa assombrosa – de podermos amar aquilo que a morte tocou.
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