Mendigos e Altivos, Albert Cossery
Albert Cossery é um
autor de culto. Fazendo a apologia da indolência, da desobediência passiva pela
não-colaboração, renegando os valores da sociedade materialista e
consumista, é frequentemente associado aos
ideais anarquistas.
Nascido no Cairo em
1913 no seio de uma família de classe média de ascendência síria, foi educado em escolas francesas. Viveu grande parte da sua vida em Paris, para
onde se deslocou aos 17 anos, com o fito de prosseguir
estudos superiores que nunca completou. Residiu num modesto quarto de hotel no
bairro de Saint-Germain-des-Prés de 1945 até ao fim da sua vida.
Amante do ócio, que lhe proporcionava o necessário espaço de reflexão, publicou (apenas) oito romances durante mais de 60 anos de vida literária. Era lento e metódico,
depurando cada frase. Dizia que quanto mais tempo tinha para pensar, maior o pudor em escrever seja
o que for.
Apesar de ter vivido
grande parte da sua vida em França é no Cairo ou semelhante território imaginário que se desenrolam os seus romances, povoados por personagens da sua infância
e adolescência.
Mendigos e altivos é
uma apologia, não isenta de contradições, da indigência e desprendimento como
filosofia de vida; da oposição pela não-colaboração: "Quando
tivermos um país cujo povo seja unicamente constituído por mendigos, logo verás
que coisa é esta soberba dominação. Cairá por terra como pó." –
explica Gohar, professor de literatura e filosofia que se tornou
voluntariamente um mendigo. Noutra as suas reflexões acerca de El Kordi, personagem que serve como contraponto do falso idealista, acrescenta: "«O
que há de mais fútil no homem», pensou ele, «é essa busca de dignidade».
Essa gente toda a pensar ser digna! Digna de quê? (...) Como se o facto de
estar vivo não fosse em si uma dignidade."
O romance inicia-se nos humildes aposentos de Gohar. Dorme no chão em cima de
jornais. Quando acorda o quarto está inundado. Gohar desperta lentamente, não sabe de onde vem aquela água. Percebe
depois pelo carpir das mulheres que o seu vizinho morrera. A água que inundava
a divisão, e que se lhe colava ao corpo,
provinha da barrela do cadáver. Cossery quer-nos comunicar algo com este episódio.
Não é apenas mais uma história curiosa, há nela um valor simbólico que conseguimos
intuir, embora seja difícil de o conhecer com certeza.
Gohar acordara mais cedo que o habitual. Sente-se mal, precisa da sua dose de
haxixe. Procura o Ieguene no
prostíbulo de Set Amina. Segue-se o crime: Gohar estrangula uma jovem prostituta,
Arnabé, imaginando que as suas pulseiras seriam de ouro e não pechisbeque. Um
acidente, diz.
Todo o romance se
desenrola na sequência deste incidente, desafiando os limites da moral, do
poder e da liberdade. Embora Gohar não confesse o seu crime, também não se
deixa condicionar por ele: não vive no medo de ser descoberto e preso. Todos
querem a determinada altura reivindicar a autoria do crime: El Kordi para
impressionar a amante; Ieguene para que Gohar não seja punido. O próprio Gohar,
quando diretamente inquirido acerca do mesmo, confirma-o. Nur El Dine, o chefe de polícia, é o
representante do poder. Mas nenhum destes personagens o reconhece como tal,
desdenham até dele, denominam a sua ocupação como inútil. De que serve castigar
alguém pelo sucedido? Isso não devolverá a vida a Arnabé. E que castigo poderá
ser aplicado a quem mesmo na prisão se sente em liberdade? Que
poder teria afinal a polícia, se todos estivessem disponíveis para confessar os
seus crimes e serem castigados pelos mesmos? O poder da polícia (que é dos braços
fortes do estado, que por sua vez é o instrumento de uma elite) assenta do medo,
na busca de uma pretensa dignidade. O exercício do poder só é efetivo se for
aceite, não é uma inevitabilidade. Gohar não colabora – recusa a angústia de nunca
se sentir digno; de correr atrás de algo que não será possível de alcançar, concorrendo
para reforçar o poder vigente. Da mesma forma, o roubo, por exemplo, não é um problema
moral para estes personagens, pois tudo é roubo; sendo que serão eles quem
menos o pratica.
Nur El Dine, por outro
lado, embora seja um representante da ordem vigente, está ele próprio
constrangido pela mesma, pois sente vergonha da sua homossexualidade. É um
homem atormentado, para quem a felicidade é impossível. Não poderá ao mesmo
tempo responder aos seus impulsos interiores e ao que julga ser esperado do si.
É sobre
este fio narrativo que são dirimidos os limites do poder e da moral, a possibilidade
da felicidade, contra a prevalência da angústia.
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