A campânula de vidro (Bell Jar), Sylvia Plath


Li pela primeira vez este livro há cerca de 4 anos. Lembro-me de que o li durante um único fim de semana, compulsivamente, e que me apaixonei totalmente. Produziu sobre mim um efeito profundo e duradouro, pois ainda hoje o recomendo sem hesitação como sugestão de leitura. Contudo, se me perguntassem exatamente por que razão achara o livro tão bom, pedindo-me um articulado racional e concreto, que fosse para além da notícia dessa marca emocional, deixada pela já remota e difusa leitura, não seria capaz de o fazer. Por esta razão decidi reler o livro, o que não sendo inédito para mim, terei feito apenas meia dúzia de vezes. 

Não tenho por hábito dar demasiada importância às circunstâncias de vida dos escritores e à sua correlação com as obras que escrevem. Autobiográfica ou não, a obra deve valer por si. E nem me interessa particularmente a interpretação da obra do ponto de vista do escritor. Vale tanto ou menos do que a interpretação de qualquer leitor. No entanto, no caso de Sylvia Plath a sua vida foi tão intensa e trágica, e tanto deste romance como dos poemas tardios (‘Daddy’ e ‘Lady Lazarus’, por exemplo) é uma sombra da sua vida, que é impossível lê-los sem pensar na autora. 

Sylvia Plath foi uma aluna de excelência. Tinha um QI estimado do 160, sendo altamente dotada. A morte do pai, quando esta tinha apenas 8 anos de idade, deixou marcas profundas. Perante a tragédia disse apenas “Nunca mais falo com Deus!”, escondeu-se debaixo dos lençóis e depois saiu para escola como se nada fosse. Sofreu, desde cedo, de problemas de saúde mental. Não é claro qual o seu diagnóstico, mas crê-se que sofria de depressão crónica e ou de distúrbio bipolar de tipo II (com prevalência dos períodos depressivos sobre a hipomania). Foi sujeita a tratamentos violentíssimos de eletrochoques. A sua primeira tentativa de suicídio aconteceu no primeiro ano da faculdade na sequência destes tratamentos – escreveu um bilhete à mãe dizendo que iria fazer uma longa caminhada, rastejou para debaixo do alpendre e tomou uma sobredose de comprimidos para dormir; encontraram-na dois dias depois. Em 1956 conheceu o jovem poeta inglês Ted Hughes com que se casaria 4 meses depois. Foi uma paixão intensa e arrebatadora. Vivendo entre os Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, Sylvia conheceu os poetas Robert Lowell e Anne Sexton que a incentivaram a escrever a partir da sua experiência pessoal. Publicou o seu primeiro volume de poesia em 1960 (‘The Colossus’), ano em que também nasceu a sua primeira filha. No ano seguinte sofreu um aborto de uma segunda gravidez que também a marcou profundamente. O segundo filho nasceu em janeiro de 1962. Pouco depois Sylvia descobre que o marido tinha um caso e os dois separam-se. Há algumas evidências não conclusivas de que haveria incidentes de violência física e verbal entre o casal. Em outubro de 1962 escreve grande parte dos poemas que a tornaram conhecida e que foram postumamente publicados sob o título de ‘Ariel’. Atormentada por uma profunda depressão e episódios de insónia permanentes tenta suicidar-se por várias vezes. A 11 de fevereiro de 1963, pela manhã, sabendo que nesse dia chegaria uma enfermeira para a ajudar com os filhos, Sylvia sela cuidadosamente os seus quartos com toalhas, fita adesiva e roupa, deixa-lhes comida, e suicida-se ligando o gás do forno com a sua cabeça lá dentro.

A sua história de vida é por demais trágica. O seu romance ‘Bell Jar’ reflete muita da vivência da autora no final da adolescência (entre os 19 e 20 anos). Por essa razão, resolve publicá-lo sob o pseudónimo de Vitoria Lucas. Embora seja impossível não termos presente que muitos dos acontecimentos aqui narrados não sejam pura ficção, não é isso que lhe confere mais força. O romance é quanto a mim genial. Importa, portanto, voltar à minha questão inicial: por que raio é tão bom? Porque deixa marcas tão permanentes em quem o lê?

Não é por usar uma linguagem elaborada, embora em momentos chave seja extremamente poético – algo que se perde parcialmente na tradução, essencialmente no que diz respeito à sonoridade: a começar pelo título, ou mesmo pela frase de abertura do romance: “It was a queer, sultry summer, the summer they electrocuted the Rosenbergs”. Não é pelo enredo ou a estrutura serem muito elaboradas. Porquê então? Se tudo é fácil e pouco elaborado porque não se escrevem romances destes à dúzia?

A linguagem é aparentemente simples, mas não é de todo fácil escrever de forma tão fácil e fluída. E a estrutura não é simples, mas sim muito delicada e perfeitamente adequada. Todos os pormenores, mesmo os que são nos parecem à primeira vista descabidos, se entrelaçam mais à frente no romance, tecendo uma trama que, como todos os grandes romances ou poemas, parece um objeto natural, que em nada poderia ser diferente. Acima de tudo, todo o livro é escrito com uma profunda delicadeza, com uma tremenda abertura, concedendo a partilhar algo extremamente íntimo sem quaisquer véus. Não há um pingo de patranha intelectual na voz desta narradora, mesmo quando nos fala de coisa fúteis. É tudo verdade, sem fissuras. E é impossível não sentir uma incomensurável empatia por esta personagem e pela própria Sylvia. A escolha da perspetiva e do tempo narrativo é também crucial. Acompanhamos na primeira pessoa a lenta desagregação da protagonista no que parece ser uma narrativa linear, recorrendo a algumas analepses; no entanto, numa leitura mais atenta, percebemos que toda a narrativa é um exercício de memória; sendo essa reconstrução a posteriori dos acontecimentos que lhe confere o carácter literário.

Para quem gosta também de escrever (como é o meu caso) este romance é ao mesmo tempo fascinante e deprimente, porque somos ao mesmo tempo maravilhados e invadidos por uma sensação de suprema impotência: por mais que tente nunca vou conseguir escrever algo assim.

Deixo-vos com uma transcrição de passagens escolhidas, respeitando a sequência do romance. Na minha opinião, estas passagens tornam evidente o referido carácter poético do texto, ilustrando o tom confessional único de Sylvia – delicado, irónico, por vezes gótico.


Capítulo 1

“Foi um verão estranho e abafado, o verão em que eletrocutaram os Rosenberg. Estava então em Nova Iorque sem saber ao certo porquê. As execuções incomodam-me. A ideia de ser eletrocutado dá-me a volta ao estômago, e os jornais não falavam de outra coisa: os cabeçalhos olhavam-me esbugalhados em todas as esquinas e em todas as entradas de metro a tresandarem a amendoim. Embora nada daquilo tivesse a ver comigo, não conseguia deixar de imaginar como seria ser queimada viva até à mais ínfima parcela do nosso corpo.

Pensava que devia ser a pior coisa do mundo.

Nova Iorque estava horrível nessa altura. Às nove da manhã, a frescura aparente que de algum modo invadia a cidade durante a noite, desvanecia-se como o fim de um sonho agradável. As ruas serpenteavam ao sol como miragens cinzentas no fundo dos desfiladeiros graníticos, os tejadilhos dos automóveis brilhavam e estalavam, e o pó seco como cinza invadia-me os olhos e a garganta.

(…)

Sabia que havia algo de errado comigo naquele verão, pois não conseguia deixar de pensar nos Rosenberg e na estupidez de ter comprado todas aquelas roupas caríssimas e desconfortáveis que agora pendiam como peixe mole no meu guarda-fato. Não conseguia deixar de pensar como os pequenos êxitos, por mim imaginados na faculdade, se esfumavam entre as fachadas marmóreas e vítreas de Madison Avenue.”


Capítulo 11

“A sala de estar do doutor Gordon era silenciosa e bege.

As paredes eram bege, e as carpetes eram bege, e os estofos das cadeiras e dos sofás eram bege. Não havia espelhos ou quadros, apenas certificados de diferentes faculdades de Medicina com o nome do doutor Gordon em latim, pendurados pela parede. (…)

Vestia ainda a blusa que trocara com a Betsy. Estavam com um ar um pouco mais murcho, pois não as lavara durante as três semanas que passara em casa após o meu regresso. O suor dava ao algodão um odor ocre mas agradável.

Há três semanas que também não lavava o cabelo.

Há sete noites que não dormia.

A minha mãe dissera-me que devia ter dormido porque era impossível estar acordada todo este tempo mas, se dormi, foi de olhos bem abertos, pois segui o percurso verde e luminoso dos ponteiros dos segundos, dos minutos e das horas, do relógio da mesa de cabeceira, ao longo dos seus círculos e semicírculos, todas as noites, durante sete noites, sem perder um segundo, um minuto ou uma hora.

Não lavava a roupa e o cabelo porque me parecia idiota fazê-lo.

Imaginava os dias do ano sucedendo-se em séries de caixas brancas e brilhantes; separando-as estava o sono, como uma sombra negra. No entanto, para mim, a longa perspetiva de sombras que separava uma caixa da outra, desaparecera de repente e eu podia ver agora uma sucessão de dias brilhando à minha frente como uma avenida ampla, branca e infinitamente solitária.

Parecia-me idiota ter de me lavar num dia, quando teria que o fazer de novo no dia seguinte.

Só de pensar nisso ficava cansada.

Queria fazer tudo definitivamente e de uma só vez. Acabar com tudo isto”


Capítulo 12

“A clínica privada do doutor Gordon coroava uma pequena colina relvada no final de um caminho isolado embranquecido com conchas partidas. As paredes do casarão, circundado por uma varanda, brilhavam ao sol, mas ninguém passeava na abóbada verde de relva.

À medida que a minha mãe e eu nos aproximávamos, o calor do verão fustigava-nos com mais intensidade. Uma cigarra cantou, como uma máquina aérea de aparar relva, numa faia, atrás de nós. O canto da cigarra apenas servia para acentuar ainda mais o já pesado silêncio.

(…)

O que me incomodava era o facto de a casa parecer normal, embora soubesse que devia estar cheia de gente louca. Não havia grades nas janelas, pelo menos que eu visse, nem barulhos estranhos e inquietantes. A luz do sol recortava-se com regularidade nas carpetes de um vermelho suave – já gastas. Um aroma a relva acabada de cortar adocicava o ar.

(…)

Apercebi-me então que ninguém se mexia.

Foquei-as com maior precisão para ver se descortinava algum motivo para as suas posturas tão hirtas. Eram homens e mulheres, rapazes e raparigas jovens como eu, mas havia nos seus rostos a expressão de uma estranha uniformidade, como se tivessem sido expostos por um longo período numa prateleira, longe da luz do sol, e sofrido o ataque de sucessivas camadas de pó.

Reparei então que algumas daquelas pessoas se mexiam de facto. Mas faziam-no com gestos tão lentos, tão tímidos, que não os conseguira destrinçar antes.”

(…)

Deitei-me em cima da cama.

A enfermeira estrábica voltou. Tirou-me o relógio e guardou-o no bolso. Depois começou a tirar os ganchos do meu cabelo.

O doutor Gordon abriu a porta do armário. Retirou de lá uma pequena mesa com rodízios com uma máquina em cima, e pô-la atrás da mesa de cabeceira da cama. A enfermeira começou a espelhar uma substância viscosa com um cheiro ativo nas minhas têmporas.

Quando ela se dobrou por cima de mim para chegar ao lado da minha cabeça que estava junto à parede, o seu seio gordo cobriu a minha cara como se fosse uma nuvem ou uma almofada. Um vago fedor medicinal emanava da sua carne.

«Não se preocupe», sussurrou a enfermeira. «Toda a gente tem medo da primeira vez.»

Tentei sorrir mas a minha pele ficara tensa como um pergaminho.

O doutor Gordon colocou-me um prato em metal de cada lado da minha cabeça. Fixou-os no seu lugar com um adesivo que me arrepanhava a pele e deu-me um fio para morder.

Fechei os olhos.

Seguiu-se um breve silêncio semelhante ao do suster da respiração.

Depois algo surgiu, algo que se apoderou de mim e me fez estremecer como se tivesse chegado o fim do mundo, ui-i-i-i, um barulho estridente crepitando no ar azul de luz, e cada vez que surgia um clarão, o meu corpo estremecia, e era sacudido até os ossos parecerem despedaçar-se e a seiva escorrer de mim como de uma planta que foi dividida.

Que mal teria eu feito, pensei.


Estava sentada numa cadeira de verga com um copo de sumo de tomate na mão. O relógio fora colocado de novo no meu pulso mas parecia-me haver nele algo de estranho. Percebi então que isso se devia ao facto de ter sido posto ao contrário. Uma outra sensação, também ela estranha, me chegou da cabeça. Os ganchos do cabelo estavam em sítios diferentes dos habituais.

«Como é que se sente?»

Um velho candeeiro pairava sobre a minha cabeça. Era uma das relíquias do escritório do meu pai, composto por uma bola de cobre à qual se ligava a lâmpada, e dali saía um fio cor de tigre que deslizava pelo candeeiro e terminava no caixilho na parede.

Decidi um dia tirar o candeeiro do lado direito da cama da minha mãe, e pô-lo na secretária no outro lado do quarto. O fio era bastante comprido e por isso não foi necessário desligá-lo. Fechei as duas mãos em torno do candeeiro e apertei-as com força.

Então, algo saltou do candeeiro num clarão azul que me fez estremecer até os meus dentes chocalharem. Tentei tirar as mãos do candeeiro mas elas estavam presas. Foi nessa altura que gritei, ou que um grito se conseguiu soltar da minha garganta, pois não conseguia reconhecer aquele som. Senti-o elevando-se no ar, trinando, como um espírito violentamente separado do corpo.

As minhas mãos libertaram-se então e caí para trás, sobre a cama da minha mãe. Um buraco pequeno e negro, que parecia desenhado por um lápis de carvão, ocupava o centro da minha mão direita.

«Como é que se sente?»

«Bem.»

(…)

“Por esse andar não vais a lado nenhum.

Não dormia há vinte e uma noites.

Pensava que a melhor coisa do mundo devia ser a sombra, os milhões de formas de sombras em movimento. Sombras que são becos sem saída. Havia sombras nas gavetas da secretária, nos armários, nas malas, e sob as casas, as árvores, as pedras, e por detrás do olhar das pessoas, dos seus sorrisos, e quilómetros e quilómetros de sombra do lado escuro da terra.

Desviei o olhar para os dois pensos rápidos às cores que formavam uma cruz na barriga da minha perna direita.

Essa manhã fizera uma pequena experiência.

Fechara-me na casa de banho, enchera a banheira com água quente e pusera a postos uma lâmina Gillette.

(…)

Mas, quando chegou a altura de o fazer, a pele do meu pulso parecia tão branca e indefesa que não fui capaz. Era como se aquilo que eu queria matar não estivesse ali, naquela pele ou naquele pulso magro que se erguia sob o meu polegar, mas algures, num lugar mais profundo e secreto, num lugar bem mais difícil de alcançar.”


Capítulo 16

“(…) Chegaram mesmo a trazer o pastor da igreja unitariana, uma pessoa de quem nunca gostei. Esteve nervosíssimo durante toda a visita porque lhe dissera que acreditava no inferno e que algumas pessoas, como eu, eram obrigadas a viver no inferno antes de morrerem, para compensar a impossibilidade de nele viverem depois de mortas, visto não acreditarem na vida após a morte, e que o que se passava após a morte dependia em exclusivo daquilo em que acreditávamos.

(…)

A minha mãe era a pior de todas. Nunca ralhava comigo, mas passava o tempo, com uma expressão triste, a implorar-me que lhe dissesse onde errara. (…)

Nessa tarde, a minha mãe trouxera-me rosas.

«Guarda-as para o meu funeral», disse.

A sua expressão alterou-se parecia estar prestes a chorar.

«Mas, Esther, não te lembras que dia é hoje?»

«Não.»

Pensei que era dia de S. Valentim.

«É o teu aniversário.»

E foi nesse instante que deitei as rosas para o cesto dos papéis.”


Capítulo 20

“Reiniciaremos tudo do ponto em que ficámos, Esther», dissera, com um sorriso doce, de mártir. «Procederemos como se tudo tivesse sido apenas um sonho mau.»

Um sonho mau.

Para a pessoa dentro da campânula de vidro, vazia e imóvel como um bebé morto, o próprio mundo não passa de um sonho mau.

Um sonho mau.

Lembrava-me de tudo.

Lembrava-me dos cadáveres, da Doreen, da história da figueira, do diamante do Marco, do marinheiro, da enfermeira de olhar austero, do doutor Gordon, dos termómetros partidos, do negro com os dois tipos de feijões, dos quilos que aumentara por causa da insulina, do rochedo pairando entre o céu e o mar como uma caveira cinzenta.

Talvez o esquecimento, como se fosse uma espécie de neve, viesse e os cobrisse.

Mas eles faziam parte de mim. Eram a minha paisagem.


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