UMA PAIXÃO SIMPLES
Autora: Annie Ernaux
Há quem
goste de livros curtos. Há quem goste de livros longos. Na minha opinião um
livro deve ser tão curto quanto possível: o mínimo necessário para produzir o
efeito desejado, para comunicar o pretendido. Há livros cuja extensão está inextricavelmente
ligada à mensagem da obra. A recherche proustiana talvez não pudesse ser
mais curta, pois embora cada parágrafo e cada frase pareça conter a forma do
próprio tempo, todas as 3000 e tal páginas que o autor escreveu no quarto isolado
com cortiça do Boulevard Haussmann conferem-lhe uma monumentalidade que não
poderia ser obtida de outra forma. O mesmo se pode dizer d’Os Irmãos Karamazov.
Mas de forma inversa também se poderá argumentar que A Metamorfose de Kafka não
precisa de nem mais uma linha; A Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges, não
precisa mais do que duas páginas. Uma paixão simples, de Annie Ernaux, é tão
concisa quanto possível e também não precisa de mais.
Na minha
opinião, o livro pode ser lido segundo o seguinte triângulo: o título, “Uma
paixão simples”, enuncia o carácter ordinário e universal do que se seguirá –
uma paixão como tantas outras; o miolo do livro, por contraponto, predispõe-se
logo desde início a chocar ou a provocar o leitor, não tanto pelo conteúdo, mas
pelo tom aberto, substantivo e sobretudo isento de julgamento, com que a
narradora descreve a sua paixão sensual por um homem casado, cheia de esperas mendicantes,
pensamentos obsessivos, comportamentos grosso modo irracionais – ao fim e ao
cabo, uma paixão simples, como tantas outras; e a reconciliação final, sem
amargura, com gratidão até, em que se reconhece a paixão como o maior dos
luxos.
“Este
verão vi pela primeira vez um filme pornográfico no Canal+”, diz-nos a
narradora logo a abrir, seguindo-se a descrição do ato sexual aí observado. Termina
o capítulo com uma advertência para com o seu objetivo declarado: que a escrita
deveria tender para isto: para a crueza (provocando talvez espanto ou perturbação)
de um filme pornográfico, sem qualquer juízo moral.
Logo de
seguida, mais uma afirmação perturbante: “A partir de setembro do ano passado,
não fiz mais do que esperar um homem: esperar que ele me telefonasse e viesse a
minha casa”. Na designação “um homem” percebe-se a pouca importância da individualidade
desse homem, de quem sabemos o mínimo, isto apesar de lhe estar completamente
subordinada. Apaixonou-se por aquele homem, mas talvez pudesse ter sido um
outro, já que grande parte da relação era interior: “Tinha o privilégio de
viver, desde o princípio, constantemente, e em plena consciência, aquilo que
acabamos por descobrir sempre, com grande espanto e decepção: que o homem que
amamos é um estranho”. Trata-se, afinal, de uma descoberta interior – mais de
que uma comunhão.
Em nenhum
momento a narradora nos diz “ai que estupida que fui”, “ai que arrependida que
estou de ter agido assim” – nada. Tudo o que temos é uma descrição desapiedada
de um comportamento apaixonado, no caso concreto uma paixão desigualmente
correspondida, com todos os seus absurdos e indigências, “a realidade mais violenta
que se possa conceber, e a menos explicável”. Penso que não há, como tantas
vezes, verdadeiro ressentimento; há até alguma gratidão, apesar de toda a dor,
pela possibilidade de ter vivido uma paixão assim: “graças a ele, aproximei-me
do limite que me separa da alteridade, a ponto de imaginar, por vezes, ter
passado para o outro lado. Medi o tempo de outra maneira, com o corpo todo.” O
apaixonado vive num estado de exaltação incomparável.
Annie
termina com a sentença:
“Quando
eu era criança, para mim o luxo eram casacos de pele, vestidos compridos e vivendas
à beira-mar. Mais tarde, pensei que fosse ter uma vida intelectual. Agora
parece-me também que é poder viver uma paixão por um homem ou por uma mulher.”
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