Tanta gente, Mariana

Tanta Gente, MarianaTanta Gente, Mariana by Maria Judite de Carvalho
My rating: 5 of 5 stars

Maria Judite de Carvalho, apesar da recente publicação da sua obra completa, continua a ser francamente desconhecida do grande público, não tendo o reconhecimento que me parece merecer. Também para mim era desconhecida a sua obra, embora estivesse já há bastante tempo na minha lista. A expectativa foi mais do que superada. Maria Judite Carvalho será com certeza um dos nomes maiores da literatura portuguesa do século XX. Não me cabe a mim dizê-lo – faço-o, portanto, sem qualquer propriedade; e faço-o a partir do um único livro – o que ainda assim não me parece arriscado, pois demonstra neste a suas amplas capacidades e talento.

No conto que dá o título ao volume, “Tanta gente, Mariana”, encanta desde logo a elegância do seu estilo que se desenvolve como uma canção melancólica. É capaz de pintar os diversos personagens com pequenos pormenores. Personagens absolutamente sólidos e bem construídos, sem fissuras.
A estrutura narrativa do conto é também muito inteligente. Começando pelo que se percebe depois ser o fim (ou quase fim) da história, recorre a digressões temporais que nos dão lentamente a conhecer ou a perceber o percurso de perda e reencontrada solidão de Mariana. Ao fazê-lo cria uma tensão dramática mais eficaz do que seguisse uma ordem linear, também menos de acordo com o tom que pretende imprimir à narrativa.

“Tanta gente, Mariana” é uma história sobre a solidão. Talvez a solidão dos tempos modernos; talvez uma solidão no feminino; ou apenas sobre a solidão. Mariana sempre se sentiu sozinha. Cedo perdeu a mãe e depois o pai. Perdeu António, o marido, para outra mulher. Perdeu o filho antes que nascesse. Associada a essa solidão, há um sentimento de desadequação social: não sabe estar; fala quando devia calar, cala quando devia falar.

Desde o início que a narradora nos comunica que está a morrer. Nunca se sabe, contudo, ao certo qual a sua doença – creio que propositadamente. Trata-se de uma morte em vida. O tempo parou. Todas as horas são iguais. Não tem mais nada a dizer a si própria. Falta-lhe esperança (aquela que insidiosamente teima a meter-se como areia por entre as dobras da vida). O conto termina exatamente com esta frase: é como se D. Glória (a senhoria) e eu estivéssemos a sair para o meu enterro.

Perante isto o leitor é deixado perante uma série de perguntas sem resposta. Como lidar com a perda? Como lidar com a rejeição? Porquê concentrar-se na perda e não no espaço que ela abre?
Que estamos irremediavelmente sozinhos é uma preposição talvez verdadeira. Existencialista. A reflexão que me trouxe – caberá a cada um dos leitores fazê-lo de forma diversa – foi paradoxal face ao livro: só quando admitimos que estamos irremediavelmente sozinhos e de bem com essa solidão, nos podemos verdadeiramente dar aos outros; até lá só queremos coisas deles. Quando já não temos mais nada dizer a nós mesmos, aí sim estamos mortos.

Os restantes contos foram também uma agradável surpresa. Nostálgicos. Por vezes dramáticos e violentos. Mas sempre elegantes. Não sei exatamente porquê, mas fez-me lembrar a Flannery O’Conner cujos contos recomendo vivamente.


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