DESERTAR
Devia sair para comprar tabaco
E desaparecer
Eclipsar-me; Evaporar; Desertar.
Mas a minha família não sabe que fumo.
É um mau exemplo, percebem?
Tenho de arranjar outro pretexto:
Posso dizer-lhes que vou tomar um café – tomo muitos cafés;
Ou vazar o lixo – há sempre muito lixo cá por casa.
De resto, não é preciso um pretexto para desaparecer
Nem sequer uma razão
Com certeza pensarão que se tratou de um equívoco:
Será que ele alguma vez existiu ou estarei a fazer confusão?
É plausível
Até eu duvido da minha existência
Seja como for, meus amigos
Preciso de desaparecer
Deixar de existir durante uns tempos
Estar sossegado
Definitivamente sossegado
Deixar o tédio invadir-me os ossos
Trespassar-me como um frio mortal
Mas...
Coitadas das minhas filhas
O que vai ser delas?
E os meus amigos?
Tenho uns poucos amigos
que talvez gostem de mim.
Esses safam-se com certeza
E a minha namorada também
No trabalho nem se fala.
Vistas bem as coisas é impossível
Alguém
Precisar univocamente de alguém.
Toda a gente pode morrer a qualquer momento
Devemos estar preparados para isso
Se não temos fulano, temos beltrano
Na prática, meus senhores, minhas senhoras,
É possível desaparecer sem que ninguém dê conta
Caminhar entre os vivos, oco e sem brilho – um simulacro
Desertar silenciosamente
Sem alarmar o carcereiro.
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