O AMANUENSE


Talvez não creiam naquilo que vos vou contar. Talvez o tomem por mais uma história, como tantas outras, para entreter. Aquilo que a torna tão inquietante, quanto inverosímil, é, apenas e só, a sua familiaridade. Está tão próxima da vulgar realidade quotidiana, que é difícil de acreditar que não seja verdadeira, mas essa pequena distância parece-nos, por outro lado, intransponível. É como se alguém pretendesse descer ao fundo de um poço como quem transpõe um degrau de escada.

Ao tempo dos acontecimentos, eu era oficial-maior da Secretaria de Estado da Fazenda na cidade de Lisboa. Prestei serviço entre 1866 e 1905, o que constitui para mim motivo de grande orgulho. Estou agora perfeitamente reformado. Nada me apoquenta. Todos os desvarios políticos dos últimos anos em nada me beliscaram. Estou demasiado velho, já não tenho medo de nada. De todas as desventuras da minha vida profissional, retenho apenas esta história. E posso agora contá-la sem quaisquer pudores ou reservas relativamente à minha pessoa. Mais do que comprometedora, a sua natureza é fantástica.

O enigmático personagem de que vos vou falar prestava serviço como amanuense nesta mesma repartição pública. Nunca lhe teria dirigido mais de um cortês bom dia, ou sequer uma ordem, não fossem as mesuras com que os oficiais menos graduados o tratavam. Apercebi-me que raramente lhe entregavam qualquer trabalho, embora o misterioso amanuense parecesse sempre ocupado. Por vezes levantava-se e caminhava até à janela das traseiras, o que não deixava de constituir uma ousadia. Nenhum outro se permitia a tais liberdades. Ora, apesar de, no meu íntimo, comungar de ideais mais liberais do que a época aconselhava, tal semente não poderia florescer no meu disciplinado jardim.

Inquirido o oficial de serviço acerca do estranho comportamento do amanuense, este rapidamente se desculpou, prontificando-se a dispensá-lo de imediato. Não a corrigi-lo, a admoestá-lo, mas a dispensá-lo. Não explicando o seu próprio comportamento, demasiado permissivo, mas escusando-se a lidar com o assunto. Como se tal lhe fosse completamente impossível. Curioso, impedi-o de prosseguir e pedi-lhe, isso sim, que chamasse o amanuense à minha presença.

Bem sei que era impossível prever as consequências dos meus atos. A curiosidade é, muitas vezes, a causa da perdição do mais reto do homens. Não que tenha sido uma perdição conhecer o enigmático senhor V.. Tê-lo-ia sido, caso tivesse chegado notícia do seu comportamento, e da minha complacência, a qualquer um dos meus superiores. Mas tal nunca sucedeu.

A primeira coisa que chamava à atenção na sua figura era o fato negro, muito justo, quase novo e impecavelmente limpo. A sua elegância não era própria dos meios económicos normalmente à disposição de um simples amanuense. Vim a saber, depois de uma discreta investigação, que vivia numa modesta, mas limpa pensão, a dez minutos de caminho do escritório. Fazia aí todas as suas refeições. Comia de forma frugal e era muito magro, com a tez branca e as faces encovadas. Não fossem os seus olhos verdes, extremamente vivos e atentos, e teria com certeza um ar doente. Mas não era de todo essa a ideia que projetava. Bastava, pelo contrário, a sua presença, o seu olhar dirigido, para nos impressionar. Quando falava, fazia-o com propriedade, dignidade e inteligência. Contudo, nem por um momento de se vislumbrava o mais breve sinal de ambição – não desejava ser outra coisa senão aquilo que já era – o que, bem vistas as coisas, é em si um feito extraordinário. Não se enganem, contudo, pensando que V. era um mero amanuense.

– Senhor V., queira por favor explicar-me a natureza do seu comportamento – disse-lhe de chofre, simulando que estava a par de tudo.

– Não estou certo a que comportamento se refere, senhor.

– Não sei bem que tipo de feitiço… ou, por outro lado, que tipo de poder julga ter sobre os oficiais de serviço. Mas previno-o de que não está a lidar com gente da mesma laia. Não sei que espécie de acordo tem com estes, mas bem vejo que o protegem, permitindo-lhe certas liberdades que na minha repartição são inaceitáveis. Bem vejo que o poupam a grande parte do trabalho de cópia. Contudo, intriga-me que, ainda assim, se mantenha ocupado. Em que outros afazeres aplica a sua bela caligrafia? (Muito cuidada, devo dizê-lo, embora raramente tenha observado um trabalho seu). Qual o fito do seu mal direcionado zelo?

– Perdoe-me, mas fico contente que tenha apreciado a minha caligrafia – e, quando esperava que continuasse, não disse mais nada. Ficou a olhar-me diretamente nos olhos, revelando uma impertinência sem limites. Talvez não fosse impertinência; talvez fosse apenas uma inimaginável desadequação de maneiras, como se não fosse deste século!

– Estou à espera que me responda, caro senhor!

– Não desejo ser mal educado. Perdoe-me alguma reserva da minha parte. Os afazeres da secretaria de estado não foram descurados. Há outros amanuenses que o asseguram de forma impecável. Não pretendo retirar-lhes essa satisfação, nem, por outro lado, insinuar que a instituição que dirige tem um excesso de escriturários. Não é esse o caso. Acho que o trabalho que desempenho é de extrema importância, embora não o compreenda totalmente. É exatamente por isso, que procuro ter uma caligrafia extremamente apurada. Para que não introduza, por esse meio, quaisquer outra distorção, numa escuta que é já assim tão ténue.

– De que está a falar? Começo a duvidar da sua sanidade mental!

– Eu próprio duvido. Mas digamos que apreendi a conviver com este estado de coisas.

Perante esta réplicas inusitadas, a minha curiosidade aguçava-se ainda mais.

– Vai explicar-me o que é que escreve durante todo o dia?

– Gostava de o conseguir explicar. Sinceramente que gostaria. Pois isso seria um sinal de que eu próprio o compreendia. A verdade é que o compreendo apenas em parte. Tudo o que posso fazer é mostrar-lho. Tal como fiz a todos os outros.

No momento, desconfiei de que se tratasse de algum embuste. Que me fosse mostrar algo que me comprometesse; tal como, com toda a evidência, havia feito com os oficiais de serviço. Escusei-me pois a fazê-lo naquele momento, procurando obter mais informações junto do oficial de serviço.

Fui para casa e passei todo o serão a ruminar sobre o sucedido. No dia seguinte, chamei novamente o oficial de serviço. E desta vez perguntei-lhe abertamente sobre a natureza do escritos do amanuense, pois sabia agora que eram do seu conhecimento.

– Prefiro não falar sobre o assunto, senhor.

– Mas está toda a gente doida? Como se atreve a sonegar-me informações, sobre algo que se passa aqui mesmo debaixo do meu nariz!? Ou me diz imediatamente o que escreve aquele senhor durante todo o dia e porque razão todos o protegem, ou seguir-se-á um processo sumário que resultará, no mínimo!, na sua expulsão da administração pública.

– Não desejo esconder-lhe nada. É apenas demasiado difícil de explicar… Ele diz que lhe ditam aquilo que escreve. Mas é ainda mais estranho do que isso. Pois não é deste mundo aquilo que sai da sua pena. Creia que não desejava esconder-lhe nada. Queria apenas evitar que se envolvesse com conhecimento nesta situação. Talvez devesse dispensar-me. Com toda a razão o faria. E também ao senhor V.. Mas de nada adiantaria.

– Porque diz isso?

– Todos os outros estão também envolvidos. Por isso, ninguém se queixa. Estão como que hipnotizados perante o seu sibilar … Todos eles leem o que V. escreve. E não hesitariam em segui-lo para onde quer que seja, de modo a assegurar que o continuam a fazer. Não posso dizer mais do que já disse. Veja com os seus próprios olhos.

E retira nesse momento da sua casaca um conjunto de folhas manuscritas.

– Todos os manuscritos são lidos, de mão em mão, sendo depois armazenados numa pasta secreta do arquivo central, onde ficam guardados, segundo instruções de V., para que sejam revelados em tempo oportuno.

Ocorreu-me de imediato a história Xerazade, que contava todas a noites uma história, para que o rei lhe poupasse a vida. A posição de V., contudo, não era de subserviência. O seu poder sobre todos os outros era aparentemente total. Talvez a posição de Xerazade não fosse diferente. É difícil discernir exatamente as relações de poder que se estabelecem entre indivíduos. Para além da aparência, tecesse-se uma relação de forças muito diversa.

Recebi em mão as folhas ainda dobradas, mas escusei-me abri-las de imediato, levado por um receio que não conseguia explicar.

Só mais tarde, na privacidade do meu escritório, junto à lareira que dissipava a humidade excessiva daquela noite de inverno, me permiti a ousadia de o fazer. Desdobrei cuidadosamente o manuscrito, onde encontrei, uma vez mais, a impecável caligrafia de V.

O que me foi dado a ler é-me impossível de explicar. Tal como todos os outros, via-me agora também sem palavras. Transcrever seria a única hipótese de corretamente vos comunicar o que li… por razões que mais à frente esclarecerei, escusar-me-ei a fazê-lo. Tratava-se de um pequeno capítulo, que por certo teria seguimento. Mas estava escrito numa linguagem bem diferente da nossa. Estava escrito em português, mas não numa grafia e linguagem correntes, mencionando por vezes palavras totalmente desconhecidas. Para além disso, o seu apuramento era tal, que nada se poderia corrigir ou reparar. Isto, mesmo não o compreendendo.

Soube depois que V. se limitava a transcrever o que ouvia. Alguém lhe sussurrava o que havia de escrever. Mais do que isso: a sua própria mão era dirigida, comandada à distância. Não apenas uma distância física, ouso dizê-lo, mas uma distância temporal. Aquelas palavras, estou convencido, vinham de outro mundo ou do futuro.

Porque razão tinham aqueles escritos de ser guardados? Na minha opinião, para que pudessem ser lidos no futuro, e assim completar o círculo, que, de todas as formas, é sem dúvida a mais perfeita e inequívoca.

V. também escrevia sob seu próprio comando. Embora fosse, é claro, difícil de discernir o que era o seu comando e o comando de outrem. Pois é impossível de destrinçar aquilo que somos, daquilo em que nos tornamos. E acreditava que também era ouvido por alguém. Alguém que também registaria, algures, as suas palavras.

Conversámos entre nós. Convencemo-nos de que era este o mecanismo sobre o qual assentava todo o devir. De que outra forma se poderia conceber, ao mesmo tempo, o progresso e eterno retorno a que nos vemos confinados.

A leitura dos textos de V., ainda que circunstancial e passageira, conferia-nos inestimáveis perspetivas e conhecimento de outra forma inalcançáveis. Mesmo que não compreendêssemos tudo.

A sede de poder engenha razões. V. tinha, absolutamente, de continuar o seu trabalho, sob pena de todo o universo sair das engrenagens e se imobilizar. Como uma fotografia – essa nova invenção de brometo e prata, que para nós já não constituía novidade.

O conhecimento mais valioso não era, porém, o de natureza técnica; daquilo que poderíamos antever do futuro. Era o conhecimento sobre a condição humana, ali escrito e reescrito em infinitas iterações, sob a forma de histórias, que eram afinal o protótipo de todas as histórias, tal era o seu grau de apuramento. Noutros casos era uma mera convocação de emoções, por conjugação não entendível de palavras, urros e lamentos. Como se fosse música ou perfeita poesia.

Eu, tal como todos os outros, vivíamos agora na expectativa da próxima história, do próximo capítulo, do próximo urro. V. estava, como sempre, perfeitamente calmo; dono e senhor de todos nós.

Era também perfeitamente claro que nenhuma daquela informação poderia alguma vez, cair nas mãos erradas. A Secretaria de Estado da Fazenda, por ser o sítio menos evidente, era de facto o mais seguro. Ninguém consultava aqueles arquivos mortos, sendo que os guardas eram também cúmplices. Nenhum governante poderia alguma vez colocar-lhes a vista em cima, sob pena de interromper o ciclo. Do mesmo modo, e por maioria de razão, também não se deviam tornar do conhecimento geral.

A história terminou de forma muito simples, contudo, curiosa. V. desapareceu. Simplesmente desapareceu. Não se trata aqui de não ter vindo no dia ou semana seguinte. Não. Segundo vários relatos, como tantas outras vezes, levantou-se da secretária e dirigiu-se até à janela das traseiras. Segundo N., o moço de recados que estava sentado junto à entrada, talvez a suas feições fossem, daquela vez, diferentes do habitual. Mas mais ninguém terá reparado nisso. Todos levantaram por um momento os olhos do seu trabalho e logo voltaram a baixá-los. E quando, persentindo uma qualquer falta, os voltaram a erguer, V. já lá não estava. Evaporara-se.

Naquele dia, cada um dos homens, foi para casa com um peso no coração. Cada um deles, soturno e cabisbaixo. No dia seguinte, na ausência de novos escritos, depressa e em conivência, procurámos a reserva do arquivo central. Não compreendereis por certo o estado de agitação que nos movia. Tão grande quanto a deceção que nos aguardava. Também estes haviam desaparecido.

Levantaram-se várias hipóteses. Os guardas juraram que ninguém poderia ter levado o arquivo de V.. Teria desaparecido em concomitância com este? Ou seria o seu roubo a causa do misterioso desaparecimento de V.?

Parecia impossível sabermos quando e como havia desaparecido o arquivo. As últimas folhas que V. deixou escritas no seu posto de trabalho continham apenas uma ladainha ininteligível. Mas, talvez por serem as suas últimas palavras, nunca me esqueci delas.

Ouvi-as, anos mais tarde, vociferadas por um louco, junto ao cais das colunas. Subitamente atento, reconheci um dos antigos guardas, com a face descarnada pela loucura. Quando me reconheceu, jogou-se a meus pés, continuando a ladainha, entrecortada por pedidos de perdão.

Nos seus olhos infectos brilhava o fulgor que outrora vira no amanuense.

– Que fizeste tu?

– Comi-o. Folha a folha, comi-o. Palavra de honra que o fiz. Queria-o para mim e mais ninguém. Bah bla uh aghnu zá!

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