A paixão de B.
B. estava irremediavelmente apaixonado.
O amor é por vezes demasiado exigente para o corpo de um homem. A tensão que cria é demasiado violenta. As suas costas arqueavam-se quase que impercetivelmente; os olhos pareciam velados, incapazes de focar; e, pior do que tudo, a sua mente estava profundamente doente.
Parava frequentemente no meio da rua enquanto pensava nela. Pobre coitado. Alguém devia acabar com aquela miséria. Apenas por simpatia poderia um estranho compreender o seu comportamento.
A concentração de pensamento e vontade em torno do objeto amado era de tal forma intensa, que toda a realidade se tornava difusa. Contudo, não poderíamos dizer que, de forma inversa, a perceção da sua adorada F. fosse mais clara. Não. Via-a, mais do que nunca, de forma distorcida, porque era em algo interior que estava concentrado e não numa mulher real. Quem poderia apreender uma mulher real e tudo o que ela significa?
Os homens têm as suas limitações. Mas se em vez de moldá-la no seu pensamento, de acordo com os seus desejos e preconceitos, a pudesse realmente ver em toda a sua infinita perfeição; se pudesse aceitar a sua beleza e a pudesse perceber; então, o mundo e as mulheres deixariam de ser uma coisa estranha. Deixariam de ser algo que desejasse moldar e possuir. Nada mais natural do que amar uma mulher. Mas B. não estava em condições de o fazer de forma calma. Estava violentamente apaixonado.
Há homens para quem a violência do amor é a uma autêntica maldição; teimam em recolher para sua casa, ou para a sua cabeça, as mais lindas flores, apenas para as ver murchar numa jarra de cristal.
O peito de B. estava prestes a rebentar, cheio que estava de refulgente paixão! Como um arco, ansiava pelo momento de máxima tensão. Mas, uma vez nessa posição, o movimento é irremediável – é apenas uma questão de tempo. Depois, restar-lhe-ia apenas a memória dessa força e a sua inefável tristeza.
O mais ridículo é que B. não tivera ainda coragem para confessar o seu amor. F. nada poderia saber acerca da agitação que corria no seu peito. Achava até que este não simpatizava consigo.
Chegara, porém, o momento. Não poderia adiá-lo mais; sob pena de implodir, tinha que lhe confessar.
O seu amor era para ele tão evidente, convivia com ele há tanto tempo e de forma tão profunda, que foi incapaz de o explicar. Como explicar uma evidência? Ela deveria conhecer tão bem o seu amor. Achou que bastava uma palavra.
Claro que F. não compreendeu nada do que ele lhe dizia. B. por sua vez achou que incompreensão dela era uma recusa; mais do que tudo sentiu-se envergonhado e fugiu.
O doce estado de embriaguez foi, ainda e mais uma vez, acentuado. Porque é na recusa e na ausência que o amor se constrói. É como um veneno. Não percebemos até que ponto pode ser intoxicante para um organismo fraco. O arco do seu corpo tornou-se, por um momento, ainda mais tenso.
F. falou então às amigas acerca do sucedido. Uma delas, mais entendida no assunto, tratou de esclarecer o comportamento de B.:
“Está apaixonado por ti, isso é evidente.”
“Como? Não digas disparates.”
Nunca pensara nele nesses termos. Mas no fundo da sua mente a ideia agradou-lhe. Esperou durante alguns dias que ele lhe voltasse a falar. Mas ele não o fez. Estava envergonhado, evitava o seu olhar; inadvertidamente B. fez o que devia para conquistar o seu coração.
Quando ela ganhou finalmente coragem para lhe falar, o seu encontro era já inevitável. Os seus lábios haviam de se encontrar. Os seus corpos haviam de se apaziguar. E por breves momentos seriam felizes.
Num êxtase prolongado, também F. tinha agora o olhar perdido. Recordava frequentemente o calor do seu enlace noturno, o abandono da sua alcova.
A paixão desgasta por demais os corpos. É impossível suportá-la durante muito tempo. O corpo de B. estava já esgotado. Em F. viam-se já pequenas brechas. Nos olhos sobretudo. Usados, perdiam a sua elasticidade, a sua tensão natural e tornavam-se mortiços.
B. começou a perder o interesse. Arreliava-se facilmente com as displicências dela. Em F. o amor transformou-se numa morna ternura.
Tragicamente, casaram.
Mas em B., a necessidade de possuir e moldar o mundo não se extinguira. Era agora, no que dizia respeito à sua relação com F., uma permanente frustração. Os seus ciúmes eram constantes apesar de injustificados. Eram o reflexo das suas próprias infidelidades. Não a deixava sozinha com outros homens; censurava-lhe as roupas e os modos; queixava-se de que ela já não o amava, quando era ele que se alienava, e com tudo isto justificava as suas aventuras amorosas.
Curiosamente, com as suas amantes, era mais contemplativo, amava-as de forma desprendida, como nunca amara F.. Cada uma delas era como um elixir para o seu tédio; amava-as apenas porque eram diferentes, nada mais. Por momentos, enquanto as olhava, deixava de pensar em si e no seu amor por F., o que era talvez a mesma coisa.
F. por sua vez era infeliz, embora não o reconhecesse. Se não fossem os filhos, há muito que o teria abandonado. Ou talvez isto fosse apenas a justificação que gostava de apresentar a si mesma. Sabia, é claro, que B. lhe era infiel – todas as mulheres o sabem. Amava-o, porém. Doentiamente, amava-o. Era esta única explicação racional para o seu comportamento.
Ansiava pelos seus ciúmes. Porque eram todo o amor que concebia. Não sabia já o que seria um amor sem ciúmes. Neles via a infidelidade de B. e isso fazia-a sofrer, como tudo o resto. Mas, no seu estado mental, qualquer sofrimento se confundia facilmente com uma réstia de felicidade. Porque qualquer coisa é melhor do que o vazio. É o vazio, o vácuo, o silêncio, que nos gela o sangue.
Foi só quando o viu na rua abraçado a uma das amantes, que uma mudança fundamental se operou na sua mente. O que mais a magoou foi o seu olhar. Como brilhavam os seus olhos, como os de uma criança, sem vestígios de ódio, violência ou ressentimento – tão diferentes do que eram para si. E que redondos eram os seus gestos, suaves os seus passos, e desprendidas as suas palavras. Beijaram-se; despediram-se; e foi sem ciúme, admirando o seu pescoço nu, provocante, que ele a olhou. Porque não a amava ele assim? Percebeu finalmente, que era sua propriedade, nada mais. Talvez a amasse, mas o seu amor não era benigno, era doentio, e mais doentia a sua submissão.
Caminhou até ele. Olhou-o diretamente nos olhos, e antes que pudessem trocar uma palavra, reuniu todas as forças e deu-lhe uma bofetada na cara. A sua mão ficou a latejar e os músculos do braço, distendidos pelo esforço desmedido, doíam-lhe até à raiz do pescoço.
Nunca mais lhe dirigiu uma palavra. Nunca o perdoaria. A sua paixão fora irremissível. Irreparável. Trágica como tantas outras.
O amor é por vezes demasiado exigente para o corpo de um homem. A tensão que cria é demasiado violenta. As suas costas arqueavam-se quase que impercetivelmente; os olhos pareciam velados, incapazes de focar; e, pior do que tudo, a sua mente estava profundamente doente.
Parava frequentemente no meio da rua enquanto pensava nela. Pobre coitado. Alguém devia acabar com aquela miséria. Apenas por simpatia poderia um estranho compreender o seu comportamento.
A concentração de pensamento e vontade em torno do objeto amado era de tal forma intensa, que toda a realidade se tornava difusa. Contudo, não poderíamos dizer que, de forma inversa, a perceção da sua adorada F. fosse mais clara. Não. Via-a, mais do que nunca, de forma distorcida, porque era em algo interior que estava concentrado e não numa mulher real. Quem poderia apreender uma mulher real e tudo o que ela significa?
Os homens têm as suas limitações. Mas se em vez de moldá-la no seu pensamento, de acordo com os seus desejos e preconceitos, a pudesse realmente ver em toda a sua infinita perfeição; se pudesse aceitar a sua beleza e a pudesse perceber; então, o mundo e as mulheres deixariam de ser uma coisa estranha. Deixariam de ser algo que desejasse moldar e possuir. Nada mais natural do que amar uma mulher. Mas B. não estava em condições de o fazer de forma calma. Estava violentamente apaixonado.
Há homens para quem a violência do amor é a uma autêntica maldição; teimam em recolher para sua casa, ou para a sua cabeça, as mais lindas flores, apenas para as ver murchar numa jarra de cristal.
O peito de B. estava prestes a rebentar, cheio que estava de refulgente paixão! Como um arco, ansiava pelo momento de máxima tensão. Mas, uma vez nessa posição, o movimento é irremediável – é apenas uma questão de tempo. Depois, restar-lhe-ia apenas a memória dessa força e a sua inefável tristeza.
O mais ridículo é que B. não tivera ainda coragem para confessar o seu amor. F. nada poderia saber acerca da agitação que corria no seu peito. Achava até que este não simpatizava consigo.
Chegara, porém, o momento. Não poderia adiá-lo mais; sob pena de implodir, tinha que lhe confessar.
O seu amor era para ele tão evidente, convivia com ele há tanto tempo e de forma tão profunda, que foi incapaz de o explicar. Como explicar uma evidência? Ela deveria conhecer tão bem o seu amor. Achou que bastava uma palavra.
Claro que F. não compreendeu nada do que ele lhe dizia. B. por sua vez achou que incompreensão dela era uma recusa; mais do que tudo sentiu-se envergonhado e fugiu.
O doce estado de embriaguez foi, ainda e mais uma vez, acentuado. Porque é na recusa e na ausência que o amor se constrói. É como um veneno. Não percebemos até que ponto pode ser intoxicante para um organismo fraco. O arco do seu corpo tornou-se, por um momento, ainda mais tenso.
F. falou então às amigas acerca do sucedido. Uma delas, mais entendida no assunto, tratou de esclarecer o comportamento de B.:
“Está apaixonado por ti, isso é evidente.”
“Como? Não digas disparates.”
Nunca pensara nele nesses termos. Mas no fundo da sua mente a ideia agradou-lhe. Esperou durante alguns dias que ele lhe voltasse a falar. Mas ele não o fez. Estava envergonhado, evitava o seu olhar; inadvertidamente B. fez o que devia para conquistar o seu coração.
Quando ela ganhou finalmente coragem para lhe falar, o seu encontro era já inevitável. Os seus lábios haviam de se encontrar. Os seus corpos haviam de se apaziguar. E por breves momentos seriam felizes.
Num êxtase prolongado, também F. tinha agora o olhar perdido. Recordava frequentemente o calor do seu enlace noturno, o abandono da sua alcova.
A paixão desgasta por demais os corpos. É impossível suportá-la durante muito tempo. O corpo de B. estava já esgotado. Em F. viam-se já pequenas brechas. Nos olhos sobretudo. Usados, perdiam a sua elasticidade, a sua tensão natural e tornavam-se mortiços.
B. começou a perder o interesse. Arreliava-se facilmente com as displicências dela. Em F. o amor transformou-se numa morna ternura.
Tragicamente, casaram.
Mas em B., a necessidade de possuir e moldar o mundo não se extinguira. Era agora, no que dizia respeito à sua relação com F., uma permanente frustração. Os seus ciúmes eram constantes apesar de injustificados. Eram o reflexo das suas próprias infidelidades. Não a deixava sozinha com outros homens; censurava-lhe as roupas e os modos; queixava-se de que ela já não o amava, quando era ele que se alienava, e com tudo isto justificava as suas aventuras amorosas.
Curiosamente, com as suas amantes, era mais contemplativo, amava-as de forma desprendida, como nunca amara F.. Cada uma delas era como um elixir para o seu tédio; amava-as apenas porque eram diferentes, nada mais. Por momentos, enquanto as olhava, deixava de pensar em si e no seu amor por F., o que era talvez a mesma coisa.
F. por sua vez era infeliz, embora não o reconhecesse. Se não fossem os filhos, há muito que o teria abandonado. Ou talvez isto fosse apenas a justificação que gostava de apresentar a si mesma. Sabia, é claro, que B. lhe era infiel – todas as mulheres o sabem. Amava-o, porém. Doentiamente, amava-o. Era esta única explicação racional para o seu comportamento.
Ansiava pelos seus ciúmes. Porque eram todo o amor que concebia. Não sabia já o que seria um amor sem ciúmes. Neles via a infidelidade de B. e isso fazia-a sofrer, como tudo o resto. Mas, no seu estado mental, qualquer sofrimento se confundia facilmente com uma réstia de felicidade. Porque qualquer coisa é melhor do que o vazio. É o vazio, o vácuo, o silêncio, que nos gela o sangue.
Foi só quando o viu na rua abraçado a uma das amantes, que uma mudança fundamental se operou na sua mente. O que mais a magoou foi o seu olhar. Como brilhavam os seus olhos, como os de uma criança, sem vestígios de ódio, violência ou ressentimento – tão diferentes do que eram para si. E que redondos eram os seus gestos, suaves os seus passos, e desprendidas as suas palavras. Beijaram-se; despediram-se; e foi sem ciúme, admirando o seu pescoço nu, provocante, que ele a olhou. Porque não a amava ele assim? Percebeu finalmente, que era sua propriedade, nada mais. Talvez a amasse, mas o seu amor não era benigno, era doentio, e mais doentia a sua submissão.
Caminhou até ele. Olhou-o diretamente nos olhos, e antes que pudessem trocar uma palavra, reuniu todas as forças e deu-lhe uma bofetada na cara. A sua mão ficou a latejar e os músculos do braço, distendidos pelo esforço desmedido, doíam-lhe até à raiz do pescoço.
Nunca mais lhe dirigiu uma palavra. Nunca o perdoaria. A sua paixão fora irremissível. Irreparável. Trágica como tantas outras.
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