Os gatos


Maria sonhava frequentemente com gatos.

Estes seguiam-na constantemente. Se ela parava e os encarava, eles sentavam-se, olhando-a também, enquanto lambiam as patas e o pelo com a sua língua cor-de-rosa. Se a paragem era demorada, acabavam por enroscar-se, dormitando. Mas nunca a deixavam, acompanhavam-na sempre.

Maria não tinha medo dos gatos. Havia tanto tempo que a seguiam nos seus sonhos, sem nunca esboçarem o mínimo gesto contra ela, que acabou por perceber e aceitar os seus modos felinos: tímidos, desconfiados, de iminente traição. Compreendia apenas que os gatos não eram seus, nem de ninguém.

Sempre desejou ter um gato e foi com essa intenção que se dirigiu a uma loja de animais. Contudo, não foi capaz de escolher nenhum daqueles que o gordo empregado, de bigodes retorcidos, lhe apresentava. Pareciam-lhe muito diferentes do que imaginara. Acabou por desistir, saindo bruscamente da loja. À porta, porém, estava uma velhota que a interpelou:

– A menina quer um gato? Aceite este, chama-se Filipe. Salve-o, não tenho a quem os dar, não sei que fazer com eles. Aceite-o.

Maria aceitou-o. Era negro como a noite.

– Cuide bem dele.

Levou-o para casa e alimentou-o com um biberão, pois era ainda muito pequenino. Estranhamente, os seus sonhos com gatos cessaram. Estes deixaram de a acompanhar e esta ausência levou-a a refletir. Os gatos, que outrora lhe pareceram totalmente inofensivos e habituais, eram agora, devido ao seu súbito desaparecimento, colocados sob suspeita iminente. Que poderiam eles querer? Não era normal sonhar constantemente com gatos, pensava – mas o que realmente estranhava era que eles tivessem desaparecido dos seus sonhos.

Certa manhã, quando Maria acordou, o Filipe estava mesmo junto à sua cara, cheirando-a, e ela assustou-se. Desde esse dia, passou a olhá-lo com desconfiança. A sua convivência já não era a mesma; suspeitava das suas intenções. O seu sono nunca mais foi profundo, pois temia que o gato a atacasse. Acabou por expulsá-lo do seu quarto, onde este dormia habitualmente, no conforto de uma alcofa, fechando a porta à chave durante a noite.

O gato, que nutria grande afeto por Maria, ressentiu-se deste afastamento. Nas primeiras noites miou junto à porta ininterruptamente, como uma criança, mas sem qualquer resultado. Maria ouvia o seu miar plangente, mas julgava-o ameaçador e traiçoeiro.

Ao fim da terceira noite, já de cabeça perdida, Maria saiu repentinamente do quarto e gritou-lhe, suplicando que parasse. O gato fê-lo, mas apenas por uns segundos. Assim que a dona lhe fechou novamente a porta, retomou o seu lamento. Maria reabriu-a, desesperada, mas desta vez, Filipe, mais prevenido, esgueirou-se de imediato para o calor do quarto. Maria não sabia o que fazer. Vencida pelo sono acabou por adormecer no sofá da sala, trancando-o dentro do quarto.

No dia seguinte, quando se dirigia para o trabalho, notou que vários gatos a seguiam. Por cima das casas e dos prédios, equilibrando-se nos muros; nos becos, pé ante pé, vigiando-a; à porta das casas; debaixo dos carros; como antes nos seus sonhos, eles seguiam-na. Teve medo, muito medo. Pensou que poderia estar ainda a sonhar e tentou despertar-se, mas sem qualquer sucesso, pois não era de um sonho que se tratava.

O dia de trabalho correu-lhe mal, pois estava muito inquieta. Quando voltou já tinha escurecido e a rua, apesar de movimentada, pareceu-lhe ainda mais assustadora do que antes. Gatos brancos, amarelos, persas e siameses, acompanhavam-na como num cortejo. Correu para casa. Trancou a porta e respirou de alívio.

Infiltrando-se lentamente, a partir do fundo da sua mente, ressumara à superfície o sempre presente medo de ser atacada por gatos. Por alguma razão era alvo de uma perseguição. Não conhecia os seus motivos, mas adivinhava as suas intenções. À primeira oportunidade, saltariam para a sua cara, de olhos injetados e dentes afiados, orelhas recolhidas e pelo eriçado, e espetar-lhe-iam as unhas nos olhos e os dentes na traqueia.

Esquecera-se totalmente de Filipe. Este, porém, nada poderia saber acerca dos medos e cogitações da dona. Estava, é verdade, um pouco ressentido com a sua incompreensível exclusão, mas isso não o impediu de se aproximar cautelosamente de Maria. Filipe não poderia saber a sorte que o esperava. Seria degolado pela própria dona, que com tanto amor e carinho o criara.

Quando, duas horas depois, caiu em si, Maria rompeu em lágrimas. Ainda quis recuperar o cadáver que atirara pouco antes para o contentor do lixo ao fundo da rua, embrulhado num saco de plástico. Saiu à rua e correu para junto do contentor onde o depositara. Abriu-o e espreitou para o seu interior. Estava vazio. Viu ainda o carro do lixo, com as suas luzes laranja rodopiando, desaparecer no outro extremo da rua. O lixo fora recolhido e com este o cadáver da Filipe. Agora seria impossível recuperá-lo. Agora nunca mais o veria. Jamais se poderia redimir. Matara um animal indefeso, um animal que amava, sem qualquer razão. Voltou a chorar.

Já era tarde e a rua estava deserta. Ouviam-se apenas os automóveis que passavam ocasionalmente na avenida, a dois quarteirões de distância, e o ladrar dos cães da vizinhança. Olhou em volta e pareceu-lhe ver alguma coisa a mexer-se na sombra, por detrás dos contentores. Assustou-se. Recuou.

Ouviu então uma voz de mulher que lhe pareceu familiar, embora não a conseguisse identificar de imediato:

– Eu conheço a menina.
– Como?

Lentamente, coxeando um pouco, a figura saiu da sombra.

– Não se lembra de mim? Dei-lhe um gatinho, um gatinho preto, não se lembra.
– Ah, sim. É a senhora. Lembro-me pois – disse desviando os olhos.
– Ainda o tem?

Maria hesitou um pouco e depois respondeu:

– Sim… Ainda o tenho – mais do que ocultar a verdade por vergonha, procurava evitar explicações para as quais não sentia forças. – Mas o que é que a senhora faz aqui sozinha, a meio da noite?

– Antes só, que mal-acompanhada. Vivo bem dos restos dos outros; não preciso de mais nada. Sou independente como um gato! Um gato preto desde que o meu marido morreu, o desgraçado!, que só me deixou as dívidas de jogo e a conta da taberna por pagar.

– Sinto muito.
– Também eu…

Maria notou que a senhora mantinha, desde o início da conversa, as mãos cruzadas atrás das costas. Ouviu então o que lhe pareceu ser um ronronar.

– O que foi isto? Ouviu?
– Não, não ouvi nada.
– Pareceu-me ouvir um gato. Ai está outra vez! Não ouve?
– Não. Absolutamente nada. A menina parece um pouco perturbada. Passa-se alguma coisa consigo? O que é que procurava aqui? Não são horas de uma menina andar pela rua.
– Nada…

A velhota vestia uma camisola larga de malha, já muito velha e suja. Maria pareceu ver qualquer coisa a mexer-se no interior da camisola e ficou com medo.

– Se não se importa, eu vou andando. Já é tarde e eu estou a ficar com frio.
– Espere um pouco. Não vá já. Acho que tenho aqui uma coisa que lhe pertence.

Colocou as mãos por dentro da camisola de malha e retirou um gato. Maria ficou ainda mais assustada. Por momentos, pensou mesmo que a velhota lhe iria mostrar o cadáver degolado de Filipe. Mas não; o gato que lhe mostrava estava vivo.

– Andava à procura do seu gato, não andava? Aqui está, encontrei-o! Conheço-o perfeitamente! Já passou mais de um ano e ele era ainda muito pequeno quando lho ofereci, mas reconheço-o. Não há dúvida! Ele também me reconheceu. Mas o que é essa cara filha? Está a sentir-se mal?

Maria não sabia o que fazer ou o que dizer.

– Porque não me disse que andava à procura do gato? Tome-o lá. Está como medo do quê, menina?

Maria limitava-se a acenar confusamente com a cabeça. Embaraçada; não querendo revelar a sua mentira; ansiosa por ir para casa, trancar a porta, enfiar-se na cama e pedir a Deus que o dia de hoje fosse desconsiderado, apagado, esquecido! Por tudo isto, Maria estendeu incompreensivelmente os braços e aceitou, pela segunda vez, um gato das mãos daquela mulher.

– Obrigada – disse.
– De nada, minha filha.
– Alguma coisa que eu possa fazer por si?
– Por mim? – Respondeu rindo. – Não, minha filha, não preciso de nada! Sou já demasiado velha.

Maria acenou que sim com a cabeça, mas desviou os olhos, começando a afastar-se. Ganhando coragem, olhou finalmente para o gato que trazia nos braços. O gato olhou também para ela. Quase que poderia jurar que era Filipe, mas isso era impossível. Passou-lhe então a mão pelo pescoço e sentiu uma rugosidade na ponta dos dedos. Voltou-o, e afastando o pelo com os dedos, procurou ver de que se tratava. Era uma cicatriz; uma longa cicatriz, de ponta a ponta, exatamente no mesmo sítio (poderia jurá-lo!), onde produzira o golpe fatal sobre Filipe. Estacou no meio da rua, virando-se na direção da velha. Já lá não estava.

Maria sentia-se agora muito melhor. Voltou a sonhar com gatos. Estes olhavam-na condescendentemente e ela submissa. Tinha, nos seus sonhos, uma cicatriz por sarar em volta do meu pescoço; não conseguia vê-la, mas sentia-a na ponta dos dedos.

Por vezes imaginava-se sem olhos, ou sufocando lentamente sob o abraço de um gato, mas sempre calma, sem medo, como se houvesse aceitado a sua sentença.

Comentários

  1. Boa! Por mim podes mandar vir mais. Gostei. Tambem gostava de escrever, e faço-o por vezes, mas preciso de tempo e espaço diferente do habitual.

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  2. Pedro,

    Não tens em mim um espert em crítica literária... mas estive aqui preso a ler este teu conto... e gostei bastante.


    Abraço,

    Rui

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  3. Obrigado. Irei continuar a publicar um por semana - pelo menos até chegar até ao fundo da gaveta.

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