O CADERNO PROIBIDO, ALBA DE CÉSPEDES (Tradução de Ana Cláudia Santos)


 

Estilisticamente, faz lembrar a Natalia Ginzburg. Uma prosa muito cuidada, articulando várias orações na mesma frase, pontuadas com um quase excesso de vírgulas, que impõem uma cadência, mas não lhe retiram ritmo. O feminismo e o ambiente familiar também não são temas estranhos a Natalia, mas a abordagem é aqui bastante diferente.

Uma mulher, Valéria, compra um caderno. Será o seu diário. Cava, deste modo, um espaço só seu, de reflexão e potencial transformação, mas também um segredo. Um espaço bastante precário, porque desde logo impressiona que, em casa, com a família (marido e dois filhos), não tenha sequer uma gaveta que seja sua. E logo aqui, começa a manifestar-se extraordinária ambiguidade das personagens, nomeadamente de Valéria, que nunca demarca o seu espaço, pois tal implicaria perder o capital moral perante a família – ela fez afinal tudo por eles e não deitaria isso a perder. O seu espaço mantém-se, pois, secreto. Descobre mais tarde que também o marido tem um segredo, mas a forma que este é vivido difere radicalmente. Valéria nunca consegue levar até ao fim qualquer forma mínima de insurreição. Até quando contesta que o marido a continue a chamar de “mãe”, perante o espanto deste, recua e diz que estava a brincar. Toda a dinâmica familiar é muito bem explorada, dissecada ao milímetro. Na família todos se comportam como “inimigos” em convivência apertada, lutando pelo seu espaço, pelo seu capital.

As personagens são muito complexas, cheias de reentrâncias. Sempre que esticamos a mão para as alcançar, constatamos que estão um pouco ao lado, oscilam. E isso torna o curso da narrativa bastante imprevisível. Valéria é de facto uma anti heroína. Todos os personagens são de certa forma, e por diferentes motivos, falhados, mas é isso que os torna interessantes.

O tempo desempenha no romance um papel fundamental. Valéria está num ponto intermédio da sua vida e é incapaz de se reinventar. Uma ratoeira de que Valeria não sai. Aponta as suas dívidas no diário, o deve e o haver, mas sem qualquer consequência. A sua filha mais velha é neste labirinto familiar a mais livre e esclarecida, talvez por isso alimente da parte da mãe tanto ressentimento. Acreditamos até ao fim que alguma coisa se vá transformar, mas nada acontece e esse é o drama.

 

«A uma certa idade», continuou, «tudo aquilo que fizemos já não nos basta; só serviu para nos tornar quem somos. E assim como somos, agora que somos verdadeiramente nós, quem quisemos ou pudemos ser, gostaríamos de começar a viver de novo, conscientemente, segundo os nossos gostos de hoje. Em vez disso, temos de continuar a viver a vida que escolhemos quando éramos outros. Eu trabalhei toda a vida, gastei trinta anos a tornar-me quem sou. E agora?» Dirigiu esta pergunta ao vazio, com grande amargura. Em seguida, quase arrependido de se ter deixado ir, acrescentou, a rir-se, que era preciso estabelecer uma idade, «quarenta e cinco anos, digamos», para lá da qual tivéssemos o direito de estar sozinhos no mundo, e de poder escolher do início a própria vida.


Os outros dormem, a esta hora: o sono apaga o dia que viveram, e o novo dia apresenta-se-lhes livre do dos dias anteriores, que eu, pelo contrário, conservo nestas páginas como num ávido livro-razão do qual nenhuma dívida é alguma vez remida.


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