À ESPERA NO CENTEIO, J. D. SALINGER (Tradução de José Lima)

 



Poderia ser um manual para escrita de ficção: uso consistente da linguagem; caracterização das personagens pela sua ação; bons diálogos.
Este livro poderia ter sido escrito na terceira pessoa e usando uma linguagem literariamente neutra, menos coloquial? Poderia, mas não teria o mesmo efeito. Isto porque a construção do personagem (Holden Caufield), um dos mais icónicos da cultura popular norte-americana, é conseguida não porque o leitor tenha uma vista privilegiada sobre o estado interior de Holden, mas sim sobre a forma por vezes distorcida, com pontos cegos, como o próprio se vê e age. É brilhante a forma como o personagem é montado pelas suas ações para com os outros, que são sintomas, reações e oclusões de estados interiores. Poderíamos dizer que o narrador não é fiável, mas não é exatamente esse o caso… não é mal-intencionado, mas apenas limitado no seu comportamento por zonas demasiado tenras para serem pisadas.
A cena que dá origem ao título do livro (The Catcher in the Rye) é também curiosa, porque se parece enquadrar nesta espécie de distorção que afeta o personagem. Falando com a irmã mais nova, que o põe em causa, dizendo que não ele não se importa com nada, Holden fala-lhe de uma fantasia de ser o ‘catcher in the rye’, apanhando as crianças que correm pelo centeio, antes que caiam num penhasco próximo. Esta imagem seria baseada num poema de Robert Burns (Comin’Through the Rye) que, como a irmã indica, este terá ouvido mal… não é “Se alguém apanha alguém que atravessa o centeio”, mas sim “Se alguém encontra alguém…” Holden, que está num processo de alienação para com o mundo adulto, deseja proteger estas crianças que caem sem perceber nesse mundo.
No final do romance, Holden é colocado perante um dilema. Avisa a irmã que vai fugir de casa e combina encontrar-se com ela para se despedir. Mas a irmã aparece com malas, para o acompanhar, e não a consegue demover. Se é a decisão certa para ele, porque não para ela? Que importa a escola e tudo mais? Se ele pode ‘desperdiçar’ a sua vida, porque não ela? Holden fica primeiro furioso e depois decide ficar em casa – o que constitui uma decisão ‘adulta’, no que isso poderá de bom e mau. A cena do carrossel é uma reconciliação com inocência infantil de que abdicara. Os miúdos no carrossel tentam agarrar um anel dourado e talvez possam cair: mas não está certo que alguém lhes diga alguma coisa; se caírem, caíram. Talvez seja esta a diferença entre apanhar ou encontrar alguém no centeio.

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