SOMBRA SELVAGEM, DIOGO VAZ PINTO

 






Não é uma escrita fresca, mas fermentada. Não se lê "de um fôlego", como lasanha de supermercado, rapidamente requentada no micro-ondas, mas com mais algum labor. Semelhante, talvez, ao que, numa espécie de fervor bacteriano, cozinhou uma imagética rica, uma linguagem viva, temperada por alguma acidez, polvilhada de odores acres e surpreendentes. Para que não reste nenhuma dúvida: estou a elogiar.

Por natureza fragmentário, o livro talvez ganhasse um gume mais apurado, se refinasse esse mote, tomando um carácter quase aforístico. A linha narrativa é muito ténue e é difícil seguir o sentido ou direção dos textos. Trata-se de uma exalação orgânica, com o seu quê de pútrido, embora não desagradável – uma fermentação, como disse, cujas emanações decorrentes são: a sensação de permanente exílio; uma nostalgia que busca companhia entre os mortos; mas também uma necessidade de encetar um diálogo com os vivos, ainda que para isso tenha de virar a mesa da cozinha e aviar uma chapada no comensal mais próximo, ou dar um topada no móvel da sala, provocando a derrocada dos bibelôs da tia – metaforicamente, diga-se.

Para além das duas primeiras entradas do livro, aqui reproduzidas nas fotos, e que vos convido a ler, deixo-vos uma seleção, que peca talvez pela sua excessiva extensão, mas que não deverá maçar:

“Na minha vida é tarde, mal oiço já os passos do sol e se os frutos caem sinto-me seguido. Vivo intrigado com as notas secas, ínfimas que escapam de troncos húmidos, o refúgio de bichos que esticam a corda ao mais espantoso silêncio. Afinam tudo, até que toda a terra se converte em eco.”

“Vá, mexe bem isto, põe-me sal, põe-me outro norte à frente, faz que o parafuso rode da forma mais lenta, como flor viva por entre a carne. Abre-me uma ferida solar esforçando um raio, um dito onde o cuspo de outros séculos conserve alguma atitude, algo mais nobre do que essa arrogância de achar que, porque se está vivo, se tem algo que aos mortos faz falta.

Quero levar tempo nisto. Embrutecê-lo, escrito. Fazer paciência. Ao lado, um pouco de mundo. Uma mão de calmantes, e o virar do copo, a água que desce fria e certa, até um fundo qualquer. Tivesse memória e bastava alindar o ditado. Agridoçá-la, e roubar perfidamente desabafos de para matá-la num punhado de personagens, embasbacadas nalgum enredo meio sujo e meio luminoso. Há uma parte de nós que já só aguenta a vida dos outros, um desgosto sério com os próprios motivos.” 

“Já todos sepultámos sombras nossas de tanto insistir nos mesmos sítios.”

“Um bom leitor, se o Estado tiver paciência de nomear um, pode funcionar como um agente da liberdade condicional, alguém que vela, nos pede para encher copitos de urina, quer-nos ver reintegrados, o cabrão, e já ouviu todas as desculpas, por esta altura está a ficar maçado com a ladainha. Tento entesoá-lo com o livro sobre nada, declinações... 

(...)

mas confesso-te que, vens-me com isso, e sinto-me a escorregar. O que querias agora? Que estivéssemos a saltar da caraterização do nosso protagonista, e da família, um ou outro amigo, para o entorno social, a ampla gestão de um complexo epocal. Foda-se, não me peças uma coisa dessas. Não é descortesia - até porque a incapacidade para a delicadeza, o apuro de um detalhe que fique deste lado, puxando-te a toalha da mesa, atirando pratos, copos, talheres e o resto da vida no chão, é minha, é, e não estou a ver grande compensação, mas cá me tens, incapaz de uma cena escorreita entre a sombra que faço no papel, “

“A luz tosse ao passar por nós querendo fazer-se notar.”

“(…) a franqueza daquelas mulheres desfazendo o desejo em tabaco”

“Mas vê-se que nunca tiveste o corpo feito tábua só para aguentar mais umas horas à tona, nem te ataram às velas o cadáver para que assobiasses depois de cada soco.

Apanhas o teu próprio nome, o som inteiro, de costas à bulha, bruto, indefeso, numa longa e emaranhada história, e as memórias de um quarto partilhado com outros três, obrigado a dispor como loiça quebrada umas palavras sobre a linha abrupta do velho que, a meu lado, quase sufoca de tanto ressonar, ou deste, à minha frente, pele e osso um moribundo praguejando no sono, já naquele estado em que o último sonho se gastou, não sobra mais nada. E além, o mais novo está imerso, calado, como quem mexe uma sopa que nunca mais arrefece e de cada vez lhe queima os lábios.”

“Querem-nos desconfiados, mãos nos bolsos ou dentro da pele, a sentir os ossos, falando sempre de outra coisa, trazendo à baila irritações cuja origem não nos é possível determinar claramente.”

“Por aqui, «os sinos tocam debaixo de terra», encontram nos ossos um desenlace, um meio de trazer à superfície, sob a forma de tremores, antecipando os pesadelos que iremos roer pela eternidade fora, dando música aos vermes.

É importante estudar nos dois ou três que nos falam desde uma língua perdida, e que remontam às origens a ousadia desta porra degenerada, os planos de um mal pudesse ter feito alguma diferença, ou as histórias de cabeceira que contam, com a voz embargada.”

“Isto aqui é como estar no mar com as piores estrelas em cima, como golpes deixando-te zonzo. Vomita e acabas atraindo algum monstro. A cama de ferro, os peixinhos a lamber a ferrugem. Cuspo e por momentos vejo uma ilha. Assobio a espinha de uma melodia, frágil, bem trabalhada.”

“Mas imagino ter percebido como será. Ter a quem se ame. Outra carne onde embalar a mesma doença. Não pude, eu, mas se tu queres, sabe isto: deves destruir a vida de mais alguém. O que seguramente irá entrançar os vossos destinos. Depois, nunca mais foges.”

“Desde então, coxeio mais por gosto, desde a dor na primeira página de um caminho feito a sós, quando as frases me soavam como os mortos quando se viram no sono. Depois mal acreditamos em nós próprios. Os nossos gestos não cuidam de nada. Os ossos estão em nós como lembranças, e tudo propaga uma sensação de que não mais seremos vistos por aí, junto dos vivos. Uma infinita retirada, a música que, no fundo de si, nos faz ouvir preces de forasteiros.”

“Apanhar-se a rir e não ter a coragem de perguntar a si mesmo o motivo. Tocar o rosto para descobrir que expressão se leva. Abrir portas que não há, fechar-se do outro lado. Zumbir com os mosquitos, partilhar a mesma gota de sangue. Buscar capelas, elogiar a castidade, ilhar-se soprando cinzas, esquivar-se à beleza, mesmo a essa, minúscula, desinteressada, sem custo algum. E se alguma vez um outro corpo se impuser, cair sobre ele e escapar sem fazer migalhas, como se a manhã seguinte fosse já outra história. Tudo numa indiferença saborosa, sentindo do tédio nos dedos as pétalas, inspirando-o fundo como a uma flor.”

“A arrancar a pele do que se diz para que o sentido de alguns passos por nós, os mais difíceis.”

“Escreve-se para se ser rendido, como quem está de guarda e passa um pouco da sua hora, às vezes minutos, outras vezes séculos.” 

“(…) torna-se claro como a escrita é uma antiguidade, um modo de pegar pelo que outro deixou, tomar-lhe dos lábios o cigarro, das mãos a caneta, ou apenas tirar-lhe os sapatos, deitá-lo.”

“Os caroços todos de um cerejal indo pelos caminhos, cuspidos, espalhados pelo mais vasto entardecer. Não tinha ainda livros, mas as chaves da sombra, um mapa dos cantos suaves de embalo: ia directo à corda namorar aquele cheiro a trevo e a leite que se desprende do vestido.”

“Além disso, chovia. Tínhamos os pés cobertos de lama, e a pressa, que admito que resultasse de um certo temor de se ser marcado. Antes, na sala branca, onde o espanto respirava para dentro de um outro saco, nem o fixei receando que se mexesse, mas, pelo canto do olho, vi-o dormindo intacto, ocupando a mesa toda, como quem houvesse escrito a última frase e deixasse às letras o sufoco restante. Já desinteressado deste alvoroço, talvez ficasse indiferente ao nosso contido motim nos porões de uma deriva surda.

Antes que a terra o fizesse ouvir o seu íntimo, ou a conversa dos bichos, senti-o como a um cordel preso pelo pulso que umas águas nervosas retesam, e, antes que o desamarrasse, ainda quis saber se é isto só?, e que estreito barco o levaria.

Que uso frio para o seu nome me restará? Mais ainda: que luz perturbo neste mundo se o chamar?

Ou terei apenas a terra à altura da boca, e um peso em cima, talvez uns passos para que o oiça, na hora em que também os anjos se aborreçam, busquem umas traseiras, um lugar menos iluminado, docemente imundo, para be-berem, denunciarem de Deus os podres.”

“Rouxinóis mortos a oriente e trazidos em livros como flores secas.”

“Aqueço o orgulho como uma lata de sopa.” 

“As frases parecem pacientes enervados entre sessões de choques. Por mais que espumem, ainda que encarem o demónio, lhe ofereçam o que lhes resta, é tarde.”

“Ouço remos forçar as águas, empurro o meu barco sobre o brilho de um traço de cuspo a ver se amanheço noutro mundo.”

“Os pássaros largam num grito indecifrável, as árvores estalam capazes de se desenraizar. De um quintal a outro, os frutos ardem, lançados acima dos muros com as pedras, e as nuvens atingidas encharcando as ruas.

Eu só os tinha visto crescer daquela maneira ao longe: ouvido no chão, a terra telegrafando uma carga de cavalaria, os rapazes levantando o pó, ecos esmagadores.”

“Com o ouvido na erva escutamos as formigas dividirem sobre a terra o peso do coração.” 

“Não suporto esta terra firme, cada dia anoitecido em que o silêncio se debate com o canto triste da canalização. Só vejo evoluir o musgo que cresce na sombra da garrafa, o insulto da mosca apalpando-me. Nas mãos, a realidade não tem já consistência, lembra a impressão de uma luz que se apaga.

Como o índio, testo a minha força em mim mesmo, puxando do poço um grito, uma água que tomou o gosto a tantos séculos. Correspondo-me com esse corpo frio lá em baixo: para duas partes de podridão, uma de eternidade.”

“O desejo parece ficar sem graça ao andar de volta de ti. Não sabe que voltas dar, soa a um bater de asas dentro de um saco.”

“Ninguém tem uma palavra mais dura, uma palavra ainda resistindo firme como um osso fixando a língua além da putrefacção destes dias. Não se ouve uma voz dessas capazes de subir a temperatura, até que o que está intimamente podre sinta o seu fedor tornar-se insuportável. Estes que ocupam o espaço todo, com o seu ruído que força tudo o que é sincero à marginalidade, estes negociadores de sílabas mortas, sorvendo ao mesmo tempo e desgostando as palavras, incapazes de se relacionarem com o mundo ou de chegarem à noite viva de alguém nesta terra”

“Miúdo, trazia as piores notas, mas tinha a paciência de um mentecapto, agachado no quintal o dia inteiro, o olho na fechadura de uma porta solta, sem incomodar ninguém. Horas a espiar galáxias: a minha era uma solidão cósmica.

Nos dias mais terra-a-terra éramos eu e o cão escavando buracos em busca dos nossos semelhantes. Então as palavras eram o modo de atiçar, fazer crescer as coisas, dar-lhes corda.”

“Quis que o seu nome soasse como uma ameaça. Proferido sempre um pouco mais baixo do que as palavras ditas antes ou depois. Não só entredentes, mas com o receio de atrair algo de funesto. Ao invés de uma obra imensa e elaborada, preferia que o que quer que lhe sobrevivesse fosse lido aos bocados, duvidando da própria língua, da capacidade de a ler. Uma obra que forçasse quem a lesse a interromper-se ir lá fora, imitando os gestos de um desses últimos fumadores para garantir-se do mundo. Esses que se apalpam, se beliscam, agora assustados com a hipótese de encontrar algo a mais, uma coisa que não devia ali estar. Ou voltar atrás para fechar a luz e dar por si no quarto, sentado, com o livro nas mãos. Um ar de alguém a meio de uma queda, preso à invocação de alguma praga. Frases sem grande sentido, mas cheias de tumulto. Ofensas que ficam connosco por nos revirarem de forma inexplicável. Como se alguém nos cortasse o sexto dedo da mão esquerda, e ainda que não deixasse rasto, nem sangue nem dor propriamente, ficasse a sombra de um anel desenhada em qualquer superfície e que te tivesse debruçado. Uma escrita vinda do outro lado da vida ou da rua. A de uma inteligência afastando-se de toda a civilidade. Algo como sentir o peso da terra sobre um corpo que se amou, e ser sovado por premonições,”


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