PRECIPITAÇÃO OCULTA
Se está nevoeiro e algum vento, a vegetação capta as gotículas em suspensão no ar, agregando-as em gotas maiores que se precipitam no solo. Este fenómeno natural designa-se por precipitação oculta – sendo também um fenómeno poético.
Ao poeta basta apresentar-se como um obstáculo sereno e oscilante. Tudo o resto
se desenrola de forma natural – embora a escrita seja um tremendo artifício. A
colisão com o meio ambiente resulta numa qualquer coalescência verbal. E sem
dúvida que há todas as razões para designar tal processo com o epítome de
oculto, pois sabe-se muito pouco acerca do mesmo. Apenas que se desenvolve em
três fases: captação, coalescência e precipitação. O mecanismo interior que o
suporta é, contudo, de difícil perceção e o seu resultado de qualidade e
interesse variáveis. A suspensão é um estado tenso, enquanto a precipitação é
uma aceleração libertária, apesar de unívoca – sempre em direção ao solo. Um
ato curto e conciso. Tanto as gotas de água como as palavras são efémeras,
cumprindo um longo purgatório cíclico. Talvez Sísifo empurrasse a pedra
montanha acima apenas para desfrutar a sua precipitação montanha abaixo. Talvez
não fosse um castigo, mas um ensino. A infinita repetição é tão bela como a
simetria; sendo esta a reiteração permanente de uma metade. O que não subsiste
é imperfeito; é um acidente. Se Sísifo tivesse arrumado a sua pedra num lugar
definitivo, tratar-se-ia de um acidente. A inexorável compulsão com que prepara
a precipitação, a sua contínua falha, é digna de um homem, mas também a única
que lhe é possível. Tal como um poeta a quem fosse impossível justapor a última
palavra no seu livro e o permanentemente reescrevesse, sempre diferente, exceto
nessa última palavra que sempre lhe faltava – sempre igual. Uma precipitação
oculta, sempre renovada, em que falhando se sucede, evitando o acidente.
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