A viagem de comboio


Sentia uma náusea profunda. Do lado de fora da janela, as árvores, os carros, as pessoas e os animais, mas sobretudo os postes das catenárias  saíam disparados a toda velocidade pelo canto do olho, que em vão os tentava fixar. Uma deriva constante e nauseabunda. Uma vertigem sem amparo. Porque teimava em olhar pela janela? E porque não haveria de fixar o horizonte longínquo, quase imóvel?

Sentiu uma vontade irreprimível de descer do comboio. Mas teria que esperar. Ainda há pouco tempo se iniciara a viagem. Teria que esperar pela próxima paragem. E talvez quando aí estivesse parado, teria dúvidas, e com certeza acabaria por seguir até ao seu destino, no fim da linha. 

No banco à sua frente estava uma senhora. Os seus olhos cruzaram-se por momentos. 

– Está tudo bem consigo? – perguntou a senhora.
– Claro. Não se preocupe. Estou apenas um pouco indisposto. 
– Não olhe pela a janela.
– Eu sei. Mas não o consigo evitar.

Sentiu-se imediatamente melhor assim que a olhou novamente nos olhos. Ela sorriu.

– Quer um pouco de água?
– Não, obrigado. 
– Sabe, às vezes também me apetece sair do comboio, sinto-me presa aqui dentro.
– De verdade? Era exatamente nisso que pensava ainda agora.
– Sabe então o que faço?
– Não.
– Meto conversa com um estranho. Como agora – sorriu novamente.
– E resulta?
– Não. Mas pelo menos não penso nisso. É que não adianta de nada preocuparmo-nos com o que não podemos resolver.
– Oh, mas é como se tivéssemos uma pedra gigante sobre o peito. Quase não conseguimos respirar.
– Eu sei. Mas não pense nisso. Essas coisas existem apenas na nossa cabeça.

Calaram-se por momentos e o barulho compassado do comboio sobre a linha adormeceu-os. Dormiram ambos profundamente durante largos minutos. Acordaram quando o comboio começou a afrouxar até que se imobilizou na primeira paragem.

– Vamos – disse a senhora – é a nossa oportunidade.
– Mas esta não é ainda a minha paragem.
– Eu sei. Nem a minha. Mas não aguento mais.

Ele pegou na pasta de trabalho, ela colocou a sua mala de senhora ao ombro e levantaram-se. Caminharam rapidamente pelo corredor e desceram do comboio no último segundo. As portas fecharam-se imediatamente atrás deles.

Olharam-se os dois sem saber muito bem o que fazer ou dizer.

– Bom e agora? O que fazemos? – disse o homem.
– Está um sol radioso. Vamos dar um passeio.
– Acha que o sol está realmente radioso?
– Claro.

O céu estava na realidade nublado, pardacento.

Saíram da pequena estação e caminharam por alguns minutos sem dizer nada. Seguiam instintivamente a linha, na mesma direção por onde seguira o comboio. As casas da pequena vila tornaram-se cada vez mais esparsas, até que ficaram definitivamente para trás.

– Vamos por aqui – disse o homem apontando para uma estrada deserta, que subia ligeiramente na direção das colinas.
– Boa ideia. Sentia-me desamparada, aqui junto à linha.
– Chega a ser agonizante.
– Veja o sol. Veja como ilumina a erva verde de forma perfeita.

Começara a chover.

– De facto, brilha de forma perfeita. As gotas de água parecem de outro mundo.

Iam já a meio da colina quando ele perguntou:

– Para onde vamos?
– Não diga disparates. Aperte-me a mão.

E continuaram a caminhar à chuva, de mão dada. Ele com a pasta de trabalho na mão direita, ela com a sua mala de senhora no braço esquerdo. Subiam encostados ao lado esquerdo da estrada. Ela tinha sapatos de salto alto e por vezes desequilibrava-se.

– Não será melhor tirar os sapatos – sugeriu ele.
– Tem toda a razão. Será muito mais confortável.
– Também tiro os meus. E olhe que não é por solidariedade. É mesmo inveja.

Ele tirou os sapatos e as meias e dobrou as bainhas das calças para que não tocassem no chão. Largou ainda a pasta na berma da estrada, no meio das ervas, para que pudesse segurar nos sapatos e ainda na mão da senhora. E ela, depois de descalçar também os seus sapatos, baixou e despiu os collants, colocando também os pés nus no alcatrão molhado.

– Que agradável. Ainda bem que se lembrou disto… estou muito contente com esta viagem de comboio.

E seguiram estrada fora balançando os sapatos na pontas dos dedos.

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