Senilidade
Não é triste a velhice. Tudo se aproxima do fim e estamos já cansados de viver, mas não é triste; é um alívio. Já vivemos muito.
Os filhos estão longe, no estrangeiro, ocupados com as suas vidas. Temo-nos um ao outro, eu e a Amélia. Cada um mais decrépito do que o outro. Até aqui, eu pior do que ela. Sem força nas pernas, incapaz de me dobrar. Mas agora Amélia começou a comportar-se de forma estranha. E nada me entristece mais do que isso.
Deixou de me reconhecer. No outro dia de manhã, quando acordei, dei com ela a olhar-me fixamente, de testa franzida e sobrolho levantado: quem era aquele velho na sua cama? Enxotou-me, empurrou-me e caí da cama. Entretanto piorou. Às vezes pensa que é uma criança e enrosca-se num canto a chuchar no dedo – e eu sem saber o que fazer. No outro dia, saiu de casa para ir ao supermercado e só voltou à noite; perdera-se e andara não sei por onde, a fazer sabe deus o quê. Mas o que me doí mais é quando se torna desavergonhada; diz-me as coisas mais ordinárias que se possa pensar, enxovalha-me; torna-se oferecida, oiço-a falar nas escadas. A minha querida Amélia. O amor da minha vida.
Como o poderia suportar? E ela? Ninguém merece ver as suas memórias, a sua vida, assim conspurcada por uma vil decadência. Quem me dera ter já partido. Que partíssemos juntos, incólumes. Às vezes rio e choro ao mesmo tempo; devo fazer uma triste figura, pois é capaz de deter Amélia no seu desvario. Fixa o seu olhar triste em mim e chora também, como se por momentos tomasse consciência do seu comportamento.
Ontem passou todo o dia a embalar uma criança; o nosso primeiro filho, o João, que morreu durante o trabalho de parto. E ela foi tão forte. Fomos os dois. Ela por mim e eu por ela. Como fomos capazes de continuar a viver, como fomos capazes de ultrapassar tudo isso e continuar a viver. Como foi possível que tivéssemos a coragem de ter mais dois filhos. Irmãos de um fantasma. Nunca pronunciávamos o seu nome. Nunca. Não seria possível suportá-lo. Mas agora repetia-o a todo o momento, enquanto o embalava; uma triste trouxa de trapos e cobertores era o seu filho João. Que mais haveria de suportar? Conseguimos sempre mais do que pensamos; infinitamente mais; mas porquê?
– Mataste o nosso filho! Foste tu que o mataste! Tu! Para poupar uns tostões… Não vias que aquele médico não era de confiança!? Viste como fumava!? Segurando o cigarro na pontinha dos dedos. E suas unhas nojentas. Ainda hoje as vejo diante dos meus olhos. Que horror! Que horror!
Fui até à cozinha, às escuras, e abri o gás. Esperei.
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