CLUBE DE LEITURA DO COMUM – ‘A TRILOGIA DE COPENHAGA’, TOVE DITLEVSEN
Na passada quinta-feira conversámos sobre ‘A Trilogia de Copenhaga’ de Tove Ditlevsen (1917-1976), com tradução de João Reis.
Num estilo contido, mas absolutamente franco, Tove conta-nos acerca da sua estranheza, dos seus sonhos, da sua alienação e, finalmente, do seu inferno. Numa prosa irrepreensível, marcada por um plácido compasso, escalpeliza as complexas relações, femininas e masculinas, que tece em seu redor; sempre com um olhar ao mesmo tempo cândido e implacável sobre si própria, como quem autopsia o próprio cadáver. ‘Ninguém escapa à infância, que se cola a cada pessoa como um odor’. A infância, ‘comprida e estreita como um caixão’, acompanha-nos para sempre – Tove nunca deixa de ser, mesmo no inferno da dependência, tão inocente e estranha como em criança.
É curiosa, e eficaz, a técnica da autora no início de cada capítulo, em que a frase de abertura se precipita enigmaticamente sobre o vazio, só completando o seu sentido mais à frente, puxando o leitor nessa vertigem. Por exemplo, logo na abertura de ‘Infância’:
‘De manhã, havia esperança. Pousava como um reflexo fugidio no cabelo preto e lustroso da minha mãe, no qual nunca me atrevia a mexer. Pousava também na minha língua, juntamente com o açúcar e as papas de aveia mornas que eu mastigava, com vagar, enquanto observava as mãos esguias e entrelaçadas da minha mãe, imobilizadas no jornal, mãos pesadas que ocultavam as notícias sobre a gripe espanhola e o Tratado de Versalhes. O meu pai saía cedo para trabalhar, o meu irmão estava na escola. A minha mãe ficava a sós, embora eu estivesse lá, e, se eu me conservasse quieta e não dissesse nada, a calma remota resguardada no seu coração inescrutável poderia prolongar-se até ao fim da manhã, e ela poderia sair para fazer compras na Istedgade como uma dona de casa normal.’
Terminámos com a leitura de um poema de Tove, no original ‘Blinkende Lygter’. Tradução minha a partir do inglês.
LUZES CINTILANTES
Na longa noite da infância, escura e sombria
existem pequenas luzes cintilantes que brilham
vestígios que a memória deixou como faíscas
enquanto o coração congela e voa
É aqui que o teu amor sem destino brilha claramente,
outrora perdido em noites nebulosas e frias,
e tudo o que desde então amaste e sofreste
tem limites estabelecidos pela vontade.
A primeira tristeza sentida é uma luz frágil e fina
como uma lágrima que treme no espaço;
só essa dor o teu coração guardará firme
quando todas as outras o tempo apagou.
Alta como uma estrela numa noite como na primavera
a primeira felicidade da tua infância arde,
procuraste-a mais tarde, apenas para te agarrares
às sombras rápidas do fim do verão.
A tua fé levou-te a grandes extremos,
o primeiro e o último a seu custo,
na escuridão agora algures ela brilha certamente,
e não há mais nada a perder.
E um ou outro aproxima-se de ti mas
nunca chegará a conhecer-te,
pois a tua vida foi feita debaixo dessas pequenas luzes,
desde então toda a gente tem de te esquecer.
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Em setembro falaremos sobre o ‘Manual para mulheres de limpeza’ de Lucia Berlin. E em outubro sobre ‘Eu Canto e a Montanha Dança’ de Irene Solá.
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